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E-commerce vs geodiscriminação: o que é geoblocking e geopricing?

E-commerce vs geodiscriminação: o que é geoblocking e geopricing?

Jota – Coluna
28.04.2018

Toda e qualquer diferenciação de preços e bloqueio de conteúdo será abusiva?

Por – Heitor Tales de Lima Fávaro

Um consumidor brasileiro acessa um dos diversos sites especializados que oferecem a busca e comparação de melhores preços e reserva um hotel para estadia em determinado período. Porém, para idêntico período, a mesma diária no hotel é ofertada a um argentino por preço diferente do ofertado ao brasileiro. Já para um consumidor situado em outro país, a oferta não pode nem mesmo ser visualizada.

Em uma primeira análise, tudo parece normal considerando-se a multiplicidade de ofertas despejadas na rede mundial de computadores, não fosse o fato de que as três situações ocorrem simultaneamente e no e-commerce de um mesmo fornecedor.

Os três usuários são, portanto, submetidos a três situações de consumo totalmente distintas, pautadas tão-somente na sua posição geográfica e / ou nacionalidade, o que é viabilizado por sofisticada tecnologia adotada pelas empresas.

O uso de linguagem de programação e o desenvolvimento de algoritmos capazes de interpretar os dados coletados de usuários na internet (por exemplo: o “Endereço IP”, que é um rótulo numérico atribuído a cada dispositivo conectado a uma rede de computadores, capaz de identificar a posição geográfica do usuário) são ferramentas cada vez mais frequentes.

Em 26 de janeiro de p.p., sensível à questão, o Ministério Público do Rio de Janeiro (“MPRJ”), ajuizou Ação Civil Pública (“ACP”) contra uma das OTAs (Online Travel Agencies) do país, levando ao Judiciário o debate sobre a discriminação com base em origem geográfica e / ou nacionalidade, sendo por isso chamada de Geodiscriminação.

Na ação são discutidas duas práticas. A primeira delas, caracterizada pela manipulação da disponibilidade das ofertas, chamada de “Geo-Blocking”, consiste basicamente em bloquear uma oferta a determinados usuários enquanto disponibilizada para outros, o que é viabilizado pelo uso da tecnologia aplicada à interpretação dos dados que revelam a posição geográfica do consumidor. No exemplo introdutório, seria representada pelo consumidor que sequer conseguiu visualizar as diferentes ofertas disponibilizadas aos consumidores brasileiro e argentino.

Na segunda pratica, que também parte da interpretação dos dados coletados dos consumidores durante o trafego na internet, o fornecedor leva em consideração a origem geográfica do consumidor para praticar diferenciação de preços, chamada de “Geo-Pricing”. No exemplo ilustrado, a diferença geográfica que separa o argentino e o brasileiro é o fator que condiciona a diferença nos preços praticados no site, embora na prática não exista qualquer justificativa aparente para tal diferenciação.

Em determinados casos é possível visualizar justificativa para uma diferenciação de preço, levando em consideração, por exemplo, questões logísticas que encarecem ou o envio de um produto ou desempenho de um serviço para uma determinada localidade. Contudo, em outros casos, tais questões não são necessariamente levadas em consideração, como defende o MPRJ para o caso de prestação de serviço de hotelaria, o que, assim, configuraria prática discriminatória.

Em tais casos, os algoritmos desenvolvidos consideram situações inusitadas que não guardam relação com o custo do produto ou serviço, como por exemplo: ofertar uma hospedagem por um valor superior a um consumidor norte americano, presumindo o seu maior poder de compra em comparação com um brasileiro.

Seja para o caso acima, seja para o cerceamento de ofertas sem maiores justificativas, o ordenamento brasileiro apresenta alguns conceitos que devem ser sopesados por qualquer empresa atuante na área de e-commerce, especialmente se pretende utilizar recursos tecnológicos que, de algum modo, importem diferenciação de tratamento a consumidores.

Através do Geo-blocking, o fornecedor, ainda que de forma impensada, pode acabar exercendo total ou parcialmente a recusa à venda de bens ou prestação de serviços a determinado grupo de consumidores. Tal medida, ao menos em tese, pode ser confundida com uma prática abusiva, que é vedada pelo Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 39, incisos II e IX1.

De modo semelhante, a coleta de dados de consumidores e a sua utilização como critério para diferenciação de preços praticados com diferentes consumidores revela-se uma técnica de venda igualmente censurável, diante dos termos dos incisos V e X2 do artigo supracitado, que consagram ser vedado ao fornecedor elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços, ou exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva. Tudo isso, claro, quando não há justificativa plausível para a diferenciação praticada.

A questão ganha maior relevância ao se considerar que o Marco Civil da Internet, legislação que estabeleceu os princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil, tratou expressamente da hipótese de discriminação do trafego, e especialmente em seu artigo 9º, §2º, incisos II e IV3, impôs como um dos deveres dos fornecedores o agir com proporcionalidade, transparência e isonomia, oferecendo serviços em condições comerciais não discriminatórias.

A pergunta que então se faz então é: toda e qualquer diferenciação de preços e bloqueio de conteúdo será abusiva?

Sem maiores elucubrações sobre as regras acima dispostas, cumpre ressaltar que, em uma primeira análise, nem sempre o tratamento diferenciado dos dados será aproveitado para mobilizar práticas essencialmente discriminatórias.

Pelo contrário, em determinadas situações, a diferenciação de preço é natural e corrobora justamente com a necessidade de conferir tratamento isonômico aos consumidores, a título ilustrativo: para considerar peculiaridades fiscais ou mesmo individualizar custos pautados em situações associadas à logísticas de entrega, quando a diferenciação do preço visa, na realidade, onerar consumidores de maneira proporcional, na exata medida de suas limitações geográficas.

Da mesma forma, o bloqueio de conteúdo nem sempre será atribuível à uma conduta repreensível por parte do fornecedor, podendo ser implementado de maneira justificada e considerando regras locais, como para assegurar a proteção de questões relacionadas ao resguardo de direitos marcários; observar diferenças relacionadas à maioridade civil e, assim, a preservação de interesse de menores, dentre outras.

Já para as situações em que a diferenciação de preço (Geo-pricing) ou bloqueio de conteúdo (Geo-blocking) partem de características que não condizem e tampouco justificam a sua prática, a lei reserva resistência a tais modalidades de Geodiscriminação.

O caso listado acima, impulsionado pelo MPRJ, ainda está em fase inicial, sem que tenha havido maiores aprofundamentos sobre o tema. O seu desfecho, porém, inevitavelmente terá relevância impar no tratamento da questão, de modo que enquanto não há posicionamentos firmados pelos Tribunais sobre o tema, o uso de ferramentas similares deve ser bastante ponderado por qualquer e-commerce atuante no mercado de consumo.

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1 Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: 

II – recusar atendimento às demandas dos consumidores, na exata medida de suas disponibilidades de estoque, e, ainda, de conformidade com os usos e costumes;

IX – recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, diretamente a quem se disponha a adquiri-los mediante pronto pagamento, ressalvados os casos de intermediação regulados em leis especiais;

2V – exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva;

X – elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços.         

3 Art. 9º O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.

  • 2o Na hipótese de discriminação ou degradação do tráfego prevista no § 1o, o responsável mencionado no caput deve:

I – abster-se de causar dano aos usuários, na forma do art. 927 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil;

II – agir com proporcionalidade, transparência e isonomia;

III – informar previamente de modo transparente, claro e suficientemente descritivo aos seus usuários sobre as práticas de gerenciamento e mitigação de tráfego adotadas, inclusive as relacionadas à segurança da rede; e

IV – oferecer serviços em condições comerciais não discriminatórias e abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais.

Heitor Tales de Lima Fávaro – Advogado da área Direito do Consumidor do L.O. Baptista Advogados

 

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