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Sistemas isolados: aprendizados deixados pelo leilão de Roraima

Sistemas isolados: aprendizados deixados pelo leilão de Roraima

Canal Energia – 28/06/2019

Por Maurício Godoi

 

O resultado do leilão para atendimento em localidades no Amazonas acendeu o sinal de alerta, pois mesmo com cadastro de renováveis apenas projetos a diesel saíram vencedores na disputa em 2017

O volume contratado pode parece irrisório para a dimensão do sistema elétrico nacional. Foram apenas 293,8 MW em potência instalada de um total de pouco mais de 6 GW em projetos cadastrados para a disputa do leilão de atendimento de Roraima. O preço médio também está em um patamar muito mais elevado ante os reportados em leilões de energia nova da Agência Nacional de Energia Elétrica, ficou em R$ 833/MWh. E apesar disso a avaliação é de que o certame foi bem-sucedido e alcançou o objetivo de trazer confiabilidade àquela região que inclui a única capital fora do Sistema Interligado Nacional.

Um dos fatores apontados para essa avaliação é a redução de custo com a geração, tradicionalmente, térmica a óleo diesel. De acordo com dados da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica, para atender a demanda da região em março de 2019, considerando as usinas que saíram vencedoras do certame realizado no final de maio, o custo médio seria de R$ 705,56/MWh, um valor 43% mais baixo do que os R$ 1.246,22/MWh que é a média dos últimos 15 meses. Esse patamar supera até mesmo as previsões iniciais do governo acerca do custo, que indicavam a possibilidade de ser 35% menor.

Somente esses dados poderiam ser suficientes para considerar positivo o resultado do leilão. Contudo, há mais pontos a serem ressaltados e inovação foi o termo mais ouvido para definir o certame, uma evolução da contratação realizada no estado do Amazonas em 2017 e que deve continuar a ser desenvolvido para as próximas contratações para atendimento de sistemas isolados no país. A meta, ver maior diversificação de fontes, pois hoje está concentrada no óleo diesel em 97% das localidades.

De acordo com a Empresa de Pesquisa Energética, os sistemas isolados eram compostos no ano passado por 270 localidades atendidas por nove distribuidoras. Dessas, 47 – ou 17% – estavam com previsão de interligação ao SIN até 2023, uma delas é Boa Vista. O raio-x dessas regiões ainda mostra que 141 localidades (53% do total) apresentam potência instalada inferior a 1.000 kW, sendo 26 com potência inferior a 10 kW. A maior é de 226,7 MW. E a carga total estimada estava em 4,28 milhões de MWh. Em comparação com o SIN, a carga total dos Sistemas Isolados, prevista para 2018, representa cerca de 0,7% do total país para atender a 1,5% da população brasileira.

A importância de atender essas regiões, além do impacto social, está na questão econômica, principalmente quando se avalia as contas setoriais. A geração nos Sistemas Isolados é subsidiada por meio da Conta de Consumo de Combustíveis (CCC), cujo orçamento para o ano passado foi da ordem de R$ 6,2 bilhões. Por isso, apontou a EPE, no Planejamento de Atendimento aos Sistemas Isolados no horizonte 2023, esses números reforçam a importância da transparência e previsibilidade do planejamento do atendimento aos Sistemas Isolados, representando também uma oportunidade para soluções de suprimento que possam reduzir o consumo de diesel e o custo de geração.

Segundo o presidente da EPE, Thiago Barral, o leilão do Amazonas foi um grande aprendizado para promover aperfeiçoamentos implementados no certame de Roraima. Um dos grandes destaques é a retirada do que se chamava de projeto de referência da distribuidora e abriu a possibilidade dos geradores interessados apresentarem seus projetos. Além disso, explicou, houve a separação em dois produtos, potência e energia com prazos diferentes para que fosse incentivada a fonte renovável.

 

“Depois de estudos identificamos que seria mais interessante contratos mais curtos para o diesel e de mais longo prazo para as renováveis. Em geral, esse leilão trouxe inovações que foram discutidas muito, tanto em consulta públicas quanto no MME, ONS e Aneel. Como resultado tivemos uma disputa muito mais satisfatória do ponto de vista de trazer as renováveis e reduzir a dependência do diesel”, avaliou Barral.

Ele citou ainda entre os termos para o certame a ampliação de prazo para a elaboração de projetos serem cadastrados. E ainda, a disputa pelo acesso no ponto de entrada da energia na distribuidora, fator que dá maior confiança e segurança para o gerador. Barral revelou ainda que o governo chegou a avaliar até mesmo a possibilidade de ter baterias no sistema de atendimento de RR para ‘segurar’ o sistema até que as atuais térmicas pudessem entrar em operação quando houvesse problemas de fornecimento na linha que vem da Venezuela, mas a ideia foi abandonada em razão de o governo não querer limitar as opções de oferta de projetos. “Entendemos que era melhor manter o desenho mais aberto e permitir as soluções mais diversificadas e inovadoras, soluções propostas pelo mercado e não indicadas pelo governo”, disse ele.

Pelo lado do regulador, o diretor relator desse certame, Sandoval Feitosa, avaliou que o leilão foi bem-sucedido. Ele tomou como base para essa afirmação o número de agentes ofertantes, foram 156 propostas de solução para serem construídas e iniciarem a operação em 24 meses.

“Outro parâmetro de extrema importância e que também permite afirmar o grande sucesso do leilão foi a diversidade das fontes de suprimento contratadas, com destaque para usinas movidas a gás natural, biocombustível, biomassa e radiação solar e soluções híbridas das propostas vencedoras”, apontou o diretor da Aneel.

Feitosa lembrou que durante a elaboração do edital do leilão foram identificados diversos desafios. Dentre estes a necessidade de substituição total do parque gerador existente por usinas modernas, mais baratas e ambientalmente sustentáveis. E ainda, a solução proposta para a operação das usinas de forma centralizada pelo ONS de forma a dar transparência no despacho, a contratação de geração que apresente disponibilidade plena durante todo o período de suprimento. Ele destacou ainda que para os próximos certames cabe a inserção de aprimoramentos, mas que não representam correção de erros ou inconsistências.

A advogada especialista em energia do escritório L.O. Baptista, Rebecca Maduro, corroborou o viés inovador do leilão pela separação em dois produtos, mesmo com apenas um fechando contrato. Em sua análise o modelo poderá ser usado para futuros certames nos demais sistemas isolados. Isso para o atendimento ao crescimento da demanda bem como para a substituição de usinas mais antigas, movidas a diesel, portanto mais poluentes e caras.

“O Brasil vem enfrentando um sério problema de abastecimento com a Venezuela e o fato de Boa Vista não estar no SIN traz uma série de questões urgentes a serem atendidas”, avaliou. “A principal é fornecer energia com confiabilidade”, apontou. Rebecca lembrou que aquele estado registrou somente este ano 89 desligamentos. “Como é que você leva uma indústria e desenvolvimento para a região dessa forma?”, questionou.

Modelo pode ser usado para a contratação de novas usinas e substituição das antigas.

Esse ponto também foi destacado pelo consultor e advogado Marcio Wagner Mauricio, que atua no setor elétrico daquele estado desde o início dos anos 2000. Ele relatou que a região padece de desenvolvimento social e econômico por conta de dificuldades logísticas e da falta de energia confiável. “Apesar da criação de um distrito industrial em Boa Vista não houve a instalação de nenhuma planta industrial por falta desse insumo”, corroborou ele.

“Vivemos uma realidade de apagões seguidos, não chegam a ser diários mas pelo menos um dia sim e outro não. Muitas vezes a extensão desses desligamentos alcança a cidade toda. A cidade precisa de suprimento confiável e isso deverá chegar com a interligação”, avaliou.

A diretora da Thymos Energia, Thaís Prandini, lembrou que esse leilão era o de maior dimensão dentre as localidades que formam os sistemas isolados. Dificilmente, opinou ela, os demais terão tantos interessados. Por isso, a tendência deverá ser de vermos outras soluções de menor porte sendo bem-sucedidas em outras regiões e o modelo híbrido deve ganhar força. Inclusive, avaliou, as baterias poderão fazer parte dos projetos vencedores no futuro, inclusive por meio da combinação com plantas solares.

Em sistemas de menor porte a tendência é vermos mais projetos híbridos que combinam a fonte solar com baterias.

A executiva elogiou a iniciativa de se colocar dois produtos na disputa. Em sua análise essa separação foi importante apesar de apenas ter sido negociado potência. Em outros casos pode ser que tenhamos um mix de contratação com perfil diferente do visto no leilão de maio. “Essa é uma ideia pode ser trazida para cá onde está o sistema interligado também, e este leilão pode ser considerado quase como um piloto”, sugeriu.

 

Investidores

Do ponto de vista dos investidores, o termo inovação também esteve presente. No caso da maior vendedora individual a Eneva, cujo projeto, a UTE Jaguatirica (132,3 MW), representou pouco mais de 44% do total negociado, o modelo revolucionou a forma de contratar energia para os sistemas isolados. Um dos aprendizados citados pelo analista sênior de Regulação e Assuntos Governamentais da empresa, Lucas Ribeiro, é justamente o alerta que o leilão do Amazonas trouxe. Apesar de permitir diversas tecnologias, acabou com a contratação apenas de diesel.

Além disso, a separação entre potência e energia foi destacada por ele, bem como a exclusividade de renováveis no produto energia. Além disso, está a questão de subprodutos, bem como a operação do sistema pelo ONS.

Visão de Boa Vista, Roraima, única capital ainda desconectada do SIN

Milton Steagall, presidente da Brasil BioFuels também citou a inovação como destaque do leilão. Na avaliação do executivo, o formato trouxe equilíbrio já que o diesel, já estabelecido na região, acabava criando dificuldades para novas tecnologias estabelecerem-se nos sistemas isolados. O maior prazo para a fonte renovável ajudou na competição entre as fontes. Para o executivo, o modelo foi vencedor. Basta ver os resultados, disse ele, completando que agora a questão é ver o que será aprimorado para os leilões de outras regiões de menor porte.

A BBF saiu do leilão com a segunda maior potência contratada. Duas usinas híbridas, a biocombustível e biomassa e outra a biocombustível e radiação solar. Juntas somam quase 74 MW. A maior, com 56 MW, será construída na capital Boa Vista e outra de quase 18 MW no sul do estado a biomassa. “Esta unidade deverá começar a geração até abril do ano que vem”, disse o executivo. A maior usina, apontou o presidente da BBF, viabilizará o etanol de milho. Os valores de investimentos nessas duas plantas somarão segundo o plano de negócios da companhia R$ 385 milhões.

Diferenciação no tempo de contrato ajudou a colocar as renováveis em condições de competir com o diesel já instalado na região.

Milton Steagall, da Brasil BioFuels

Já a Eneva conseguiu monetizar a reserva adquirida da Petrobras em menos de um ano. Apesar de já terem se passados 15 anos desde o inicio do contrato da ANP e restarem 12 anos ele lembrou que o governo se dispõe à renovação do contrato caso haja a monetização dos recursos explorados.

O projeto já está em construção e a empresa está otimista. O contrato tipo EPC com a Techint prevê a conclusão da obra dentro do prazo de 24 meses. Quando pronta, se chamada a despachar em sua totalidade, utilizará 22 carretas de gás natural por dia. Esses veículos percorrerão cerca de 1 mil quilômetros de distância para conectar o campo de Azulão com a térmica em Roraima. “Na usina teremos tancagem com capacidade de sete dias de operação da usina de forma contínua, o número de carretas que serão utilizadas por dia dependerá do volume de despacho comandado pelo ONS”, explicou ele. A usina é totalmente flexível, a receita fixa é mais alta, mas o CVU está na casa de R$ 200/MWh. “É uma das primeiras térmicas do Norte a ser despachada por ordem de mérito, quando Boa Vista estiver interligada ao SIN”, acrescentou.

A interligação ao SIN pode criar uma situação complexa quanto à operação dessas usinas e seu custo de operação para o sistema. Contudo, Rebecca, do L.O. Baptista destacou que é necessário o respeito aos contratos quando o Linhão Manaus Boa Vista finalmente entrar em operação.

 

Barral, da EPE, avaliou que quando a capital estiver conectada ao SIN por meio do linhão entre Manaus e Boa Vista, a usina da Eneva poderá atribuir mais segurança não somente a Boa Vista mas até mesmo a Manaus. Outra coisa é a possibilidade de desenvolvimento de um mercado de gás naquela região que pode beneficiar outras localidades por meio da exploração de campos terrestres, e que está na pauta do setor com o Novo Mercado do Gás.

De acordo com a diretora da Thymos Energia, caso a interligação realmente ocorra como o previsto os consumidores continuarão tendo que arcar com um custo adicional da CCC para manter a geração térmica por lá. Claro que o patamar será menor do que se viu no passado, conforme apresentado nos cálculos de redução de custo. Mas mesmo assim ainda há uma parcela a financiar a energia mesmo com a interligação no SIN.

Em sua análise por se tratar de atribuir confiabilidade ao sistema, a necessidade de energia térmica se faz presente. Além disso, o leilão contou com projetos híbridos e com a térmica a gás da Eneva. “O sistema ganha muito com essas usinas”, definiu.

Separação entre potência e energia e exclusividade para as renováveis em energia são algumas das inovações do certame

 

Conhecedores da região apontam que o prazo de dois anos para a viabilização de projetos é um dos desafios. Ainda mais porque o estado tem apenas duas formas de conexão, por via aérea ou terrestre por meio da BR 174, conhecida por passar justamente pelas terras dos índios Waimi Atroari, os mesmos que acabaram por inviabilizar o licenciamento ambiental para o linhão Manaus – Boa Vista, licitado em 2011. Há relatos de que representantes indígenas interrompem a circulação de qualquer veículo que não seja ônibus ou ambulância. E ainda há os problemas com as estradas durante o verão amazônico, caracterizado por chuvas torrenciais.

Apesar disso, o presidente da EPE disse acreditar que os projetos serão desenvolvidos e que há uma gestão de risco feita que se identifica algum problema de implantação as soluções trabalhadas terão como meta a segurança no abastecimento do estado de Roraima. E ainda, que apesar do sucesso, ficam os aprendizados com o certame e o trabalho continua no sentido de aperfeiçoar as regras de leilões para atender os sistemas isolados. Entre eles está o de identificar as necessidades de certames adicionais e garantir o suprimento.

 

Disponível em: https://www.canalenergia.com.br/especiais/53103682/sistemas-isolados-aprendizados-deixados-pelo-leilao-de-roraima

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