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Regulação da internet e riscos de desmonte das liberdades digitais — Parte 2

Regulação da internet e riscos de desmonte das liberdades digitais — Parte 2

8/1/2021

ConJur

 

Por Fabrício Bertini Pasquot Polido

 

Em artigo anterior nesta ConJur, propus uma leitura crítica sobre o cenário de iniciativas legislativas recentes em temas afins à regulação da internet no Brasil. Em 2020, elas abriram debates públicos por suas repercussões sensíveis para a esfera de direitos fundamentais de usuários de internet, o regime de responsabilidades de empresas de tecnologia e a observância de obrigações assumidas no plano internacional pelo Estado brasileiro. Em nota de retrospectiva, o Projeto de Lei nº 2630/2020 (Lei de Liberdade, Responsabilidade e Transparência da Internet) é um bom exemplo de como a questão da inadequação dos transplantes jurídicos estrangeiros para a realidade doméstica se apresenta, particularmente representado pela NetzDG alemã — a Lei de Aperfeiçoamento da Aplicação das Leis nas Redes Sociais de 2017 [1].

Há vários pontos polêmicos — e não pacíficos — sobre a iniciativa de regular internet do ponto de vista do conteúdo informacional e discurso no Brasil. A proposta do PL 2630 foi apresentada com o objetivo de coibir práticas relacionadas à disseminação de desinformação online e tudo quanto tem sido associado ao disparo em massa de fake news a partir de serviços de mensageiros privados. A construção de justificativas ao PL 2630, por sua vez, desconsiderou valores fundantes da própria internet e desrespeitou o princípio de equilíbrio de interesses que é consagrado internacionalmente como necessário para equacionar demandas de acesso à informação, liberdades comunicativas e de desenvolvimento de modelos de negócios baseados nos serviços digitais. A abordagem equilibrada entre direitos e obrigações, como predominante na tessitura normativa da Constituição e do próprio Marco Civil da Internet desapareceram por completo no PL 2630, sob o argumento de que o modelo da NetzDG alemã que o inspira seria mais adequado para o Brasil. Antes de ter recorrido à autoridade de argumento de que a lei estrangeira é o espelho que deve seguir o legislador brasileiro no combate às fake news, o próprio Congresso Nacional deveria ter empreendido a discussão de fundo que representa as principais questões contemporâneas da governança da internet na atualidade.

São questões que não saíram da agenda internacional, mas hoje o ambiente doméstico, muito hostil às relações diplomáticas multilaterais e cooperativas, deixa de auxiliar para a consecução daquele objetivo mais amplo. Durante a própria pandemia da Covid-19, pouco se falou no Brasil a respeito de políticas públicas em áreas cruciais da infraestrutura da internet, da negativa do direito de acesso pela universalização dos serviços de banda larga (negligenciada na malfadada reforma da Lei Geral de Telecomunicações), dos efeitos nefastos da exclusão digital e da falta de letramento digital da população brasileira. Nada se discutiu como essas manifestações concorrem para a ausência de defesa social contra a escalada de desinformação e que não resume a plano do negacionismo científico ou disseminação de fake news durante a pandemia.

Também segundo a visão de que as grandes plataformas deveriam ser alcançadas pela lei objetivada, de modo a elevarem seus compromissos de transparência na moderação de conteúdo, o PL 2630 deixou deliberadamente de enfrentar questões relevantes de políticas da internet. Inclusive, não deixam de ser as mesmas encontradas na Alemanha, ainda que em distintas gradações. Entre as questões, destacam-se o déficit dos instrumentos do Estado e dos papéis das autoridades de aplicação da lei para prevenir e sancionar as condutas da criminalidade organizada nas redes informáticas, a precisa definição de ilícitos civis e criminais e imputação de responsabilidade àqueles que financiam a indústria da desinformação e das operações de influência. Muitas delas, inclusive, são direcionadas por governos estrangeiros e atores não estatais em cenários eleitorais. Até mesmo a oportunidade de adesão do Estado brasileiro à Convenção de Budapeste de 2001 sobre Crimes Cibernéticos — e de acesso aos seus protocolos adicionais — parece minguar entre os parlamentares, a despeito dos próprios esforços do Executivo e da Procuradoria Geral da República nessa frente e do convite vindo do Conselho da Europa.

Mais uma vez, estamos diante de iniciativas de lei — como o PL 2630 e seus derivados — que merecerão maiores discussões e amadurecimento em 2021. Isso porque os grandes penalizados seriam usuários, cidadãos, agentes econômicos e a própria internet no Brasil. Naturaliza-se uma escolha de política normativa segundo a qual condutas ilícitas e repreensíveis do ponto de vista do Direito são “regra” na internet (e não, exceção), atingindo a coletividade de usuários da internet e empresas de tecnologia, como as redes sociais e serviços de mensagens. A realidade do Brasil, como conhecemos, é bastante distintiva, no entanto. O Brasil é a quarta maior comunidade digital do globo, segundo relatórios e estatísticas da União Internacional das Telecomunicações. A Covid-19 denunciou escancaradas exclusões, o atraso de nossos ambientes educacionais, profissionais e lares dependentes de sistemas computacionais ultrapassados e inseguros, além da recente politização, não apenas das vacinas e tratamento da doença, mas também das condições de viabilidade de estruturas de conexão 5G no território nacional, em linha com os embates entre China e Estados Unidos na cruzada global tecnológica. O Brasil foi forçado, em graus discriminatórios e de disparidades regionais, a manter a internet como campo crucial e digno de comunicação e interação, quase que espaço vital de sobrevivência, trabalho e sociabilidade. Ou teria sido diferente? Muito pouco foi dito publicamente entre nós, salvo pela colheita de vozes reacionárias para comprimir a regulação da internet no Brasil, um misto entre ressuscitar esqueletos do armário (como um dia já foi o desastroso “PL Azeredo” [2]), criminalizar usos da internet e regressar ao bordão de que a internet é “terra sem lei”.

A NetzDG alemã não é a última representação da “modernidade” legislativa no campo da internet, pelo simples fato de ela obrigar as plataformas a publicar relatórios específicos de transparência quanto à remoção de conteúdo e perfis de redes sociais alcançados. Ou por levar a maiores contratações de funcionários pelas plataformas para lidar com casos de remoção de conteúdo “manifestamente ilegal”. A prática da indústria da internet há mais de dez anos já se dedica a essas frentes. Dito de outra forma, a lei alemã parece consagrar o que as plataformas já estabeleciam como padrão corporativo global e que influencia outros agentes econômicos nos mercados, em processos distintos de inovação sequencial e imitação. Esse aspecto é absolutamente desconhecido pelos parlamentares que patrocinaram a ideia de que espelhar-se na lei alemã seria a saída para o caso brasileiro.

Não diferentemente, para contextualizar nosso leitor, existe ainda viva a tradição cultural na Europa de resistência contra o uso de ferramentas de informação e comunicação nas redes, muito em parte sintetizada pela velha e mal compreendida oposição entre a “privacidade” e liberdade de expressão nas redes. Ao longo dos anos, essa tradição europeia continental chegou a vociferar responsabilização direta de mídias sociais e plataformas digitais pela desinformação online, aceitando ou tolerando maiores pressões de criminalização, igualmente, de usos legítimos da internet. O maior risco, todavia, reside no meio proposto pelas tendências punitivistas. Isso porque essas correntes praticamente desconsideram padrões de prevenção e responsabilidade e invariavelmente miram a dinâmica de comportamentos lícitos de usuários. São comportamentos desde reunião pacífica, associação, ou oposição política, passando pela produção e criação colaborativas, até o simples consumo ou uso de produtos digitais.

A internet é um dos vários locais de expressão de ideias e potencializadora de discurso, mas está longe de ser esfera pública no sentido autêntico do termo. Ela é regida pela confluência entre interesses públicos e privados, nos quais informação, tecnologias e conhecimento se entrechocam. Deve ser absolutamente “radical” o debate democrático a ser travado para pensar e repensar a internet. Ele sugere voltar, sempre que necessário, aos fundamentos que explicam o funcionamento da internet, o pensamento em rede, o intuito comunitário existente. É observar as distorções potencialmente geradas pelos poderes constituídos em situações de abuso e ilegalidade, quer pela atuação de agentes estatais e não estatais quer pela instauração de formas sutis de autoritarismo digital.

A expectativa, por exemplo, de que a transparência por relatórios das plataformas indicando bases e casos de remoção de conteúdo ou suspensão de perfis induza “boa governança” ou “autorregulação regulada” no PL 2630 parece desconsiderar um aspecto central. Atores estatais e seus governos, no tensionamento e erosão democráticas, têm sido lenientes e contributivos com monitoramento em massa dos usuários de internet e operações de influência. Ora compelem empresas a atuar como vigias dos comportamentos digitais, ora a elas se associam para adoção de filtros, para fragmentação da rede e para monitoramento de tráfego de internet. Relatórios de transparência não serão suficientes para controle do que poderia ser considerada remoção para censura pelo Estado ou conformidade do conteúdo postado com as políticas das plataformas. Mesmo na Alemanha, a prática de monitoramento de tráfego de dados e do comportamento de usuários de internet tem sido questionada inclusive quanto à desconformidade com normas vigentes da União Europeia e de tratados e convenções de Direitos Humanos e de propriedade intelectual.

Há muitos anos, para ilustrar, o monitoramento de dados de tráfego mediante controle de download de materiais disponíveis na internet e os bloqueios de acesso a sites e plataformas para cidadãos residentes na Alemanha são alvos de críticas, inclusive por respeitadas relatorias internacionais e organizações da sociedade civil [3]. As práticas incluem processos administrativos e judiciais com pesadas multas para usuários e empresas por alegações de violação de direitos de propriedade intelectual e responsabilidade contributiva, em que são desconsideradas hipóteses de exceções e limitações e exclusão de matéria protegida por direitos autorais. Em casos mais extremos, autoridades ignoram a defesa de pagamento legítimo por assinaturas de serviços de streaming ofertados por plataformas como Amazon, Netflix, Hulu e Spotfy, e chancelam naturalmente a cartelização entre titulares e agentes oportunistas de cobrança que ofertam serviços de notificação aos usuários e e abertura de procedimentos por alegada infração a direitos de autor. Algumas dessas plataformas, vale lembrar, são proibidas de operar na Alemanha, de modo que a prática vigente do país tem forjado ambiente hostil a legítimos usuários e consumidores, convertidos em piratas virtuais, sem a possibilidade de defesa [4].

A partir de 2013, o episódio mais extremo levou usuários de internet às demandas em massa por violação de direitos autorais por assistirem a vídeos pornôs disponíveis na plataforma RedTube, com o que se constataram igualmente os excessos de monitoramento de tráfego a partir de identificação sistemática de endereços IP e comportamentos baseados nos acessos a partir das transmissões online dos vídeos.

Os desafios seguem mais além. A situação do monitoramento de tráfego de internet de usuários pelo Serviço Federal de Inteligência (o Bundesnachrichtendienst) sempre foi mais delicada. Mais recentemente, em maio de 2020, o Tribunal Constitucional alemão decidiu que o direito fundamental de privacidade das telecomunicações deve se aplicar irrestritamente a nacionais e não nacionais, nos termos do artigo 10 (1) da Constituição, e que qualquer medida da agência deveria ser conduzida de modo a respeitar esses direitos, mesmo para usuários de internet localizados em um país terceiro se comunicando com partes na Alemanha [5]. Segundo o tribunal, direitos de usuários podem ser violados de várias formas, pois o monitoramento feito pelo SFI levaria à vigilância em massa, e não a uma espécie de “vigilância direcionada” ou “vigilância estratégica” [6]. Na detalhada decisão, observa-se a preocupação com os poderes de monitoramento de tráfego atribuídos ao órgão, carentes de exame de proporcionalidade e de sujeição ao controle externo por autoridade que permita contrabalancear os efeitos concretos das medidas com os fins buscados. Essa forma de vigilância abre a possibilidade para aquilo que a corte visualizou como retenção e análise generalizada de dados de tráfego não selecionados em processos de comunicação privada e de dados espontâneos que atingem a vida cotidiana, bem como a identificação de interesses, desejos e preferências, todos refletidos nos usos da internet.

São bons exemplos a demonstrar a necessidade de cautela, por parte do Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, para as distorções trazidas pela importação automática e irrestrita de uma lei estrangeira. Ela não imune aos crivos de constitucionalidade e de legalidade internacional necessários para qualquer exercício de modelagem legislativa no Brasil.

Fabrício Bertini Pasquot Polido é advogado, sócio em L.O. Baptista Advogados, professor associado da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, doutor em Direito Internacional pela USP, foi pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Direito Internacional Privado de Hamburgo (2012) e Instituto Weizenbaum para Sociedade Conectada (2018), professor visitante nas Universidades de Kent e Humboldt de Berlim e coordenador do Centro de Estudos Transnacionais e Comparados da UFMG.

[1] Texto integral e apresentação em: <https://www.bmjv.de/DE/Themen/FokusThemen/NetzDG/NetzDG_EN_node.html>

[2] O PL nº 84/1999, de iniciativa então do Deputado Eduardo Azeredo (PSDB-MG), tinha como objetivo de política normativa a instituição uma “lei para combate de crimes na internet” e estabelecia mecanismos de vigilância e monitoramento na rede, limitadores de direitos e liberdades, e de criminalização de condutas típicas da operação da internet. Para leitores não familiarizados com o cenário pré-Marco Civil, o PL Azeredo foi um dos grandes exemplos de iniciativas que, se aprovadas, resultariam em rebaixamento de direitos civis e políticos na internet, somente superado com o advento da própria Lei 12.965/2014.

[3] Cf. Conselho da Europa, Comparative study on blocking, filtering and take-down of illegal internet content. Strassbourg: Council of Europe, Mar 28, 2017; Freedom House. FONT 2019/Germany. Disponível em <https://freedomhouse.org/country/germany/freedom-net/2019>

[4] A esse respeito, vale observar o trabalho feito pelo European Consumer Centre (ECC) Germany, com descrição acerca dos procedimentos contra usuários que fazem download de materiais protegidos na internet. Disponível em: <https://www.evz.de/en/index.html>.

[5] Cf. BVerfG, 1 BvR 2835/17, decisão de 9 de maio de 2020, paras. 1-332. Tradução disponível em: http://www.bverfg.de/e/rs20200519_1bvr283517en.html (Caso “Ausland-Ausland-Telekommunikationsüberwachung”).

[6] Idem, especialmente paras 142 e ss; 300 e ss. (relativamente à aplicação da Lei do Serviço Federal de Inteligência, modificada pela Lei de Monitoramento de Telecomunicações Estrangeiras de 23 de dezembro de 2016).

 

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