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Euforia ou desconfiança? A febre Clubhouse e os desafios para o marco legal digital no Brasil

Euforia ou desconfiança? A febre Clubhouse e os desafios para o marco legal digital no Brasil

Tiinside
30/4/2021

No início de fevereiro, foi lançada uma nova rede social e que se tornou a grande febre entre usuários da internet no mundo, incluindo o Brasil – É o Clubhouse.  Gerenciado pela empresa Alpha Exploration.Co, registrada na Irlanda do Norte, ele chama a atenção por ser basicamente um aplicativo “simples, mas inovador”, estruturado por chats de voz entre usuários que somente podem participar mediante convite.  O design de funcionamento do app é baseado em rede social, entre clubes e salas em grupo, nas quais usuários somente se falam por áudio. Não é possível enviar fotos ou mensagens. Chats são sempre abertos como sessões ao vivo. As salas contam com os “speakers”, usuários que podem falar durante a conferência, e os “listeners”, que são os ouvintes, participam mas não interagem.

Na prática, o Clubhouse funciona como um palco, com os atores principais que dialogam entre si como se estivessem em um estúdio exclusivo, bastante apelativo para influenciadores, celebridades, subcelebridades a aqueles que agora se autodenominam “inspiradores” para vender serviços e soluções de consultoria nas mais variadas áreas e monetizar conteúdo. A “plateia” ouve os diálogos, conhecendo o que é dito ou discutido entre os interlocutores no chat. Ao fundo pode haver quem grave e registre o áudio, mas o aplicativo em si não oferece a possibilidade de quem foi gravado ter acesso à gravação. É claro que eu poderia tentar realizar uma pesquisa etnográfica para compreender o que se passa (me tornar usuário e servir de interlocutor ou plateia), empreendendo um estudo analítico, bem aos moldes da antropologia cultural. A diferença, contudo, é que evitei cair em mais uma tentação pandêmica e pedir para ser admitido ao novo aplicativo. Continuei com minhas redes sociais de costume e leal aos excelentes podcasts que tenho ouvido em plataformas de streaming, como mais recentemente, “A Praia dos Ossos”. A série conta a fascinante história de Ângela Diniz, seu assassinato por Doca Street em dezembro de 1976, e os enlaces com o movimento feminista e os fantasmas do feminicídio no Brasil.

No fundo, eu estava com receio de enfrentar um novo app, poluição digital e moderação de conteúdo. A impressão de quem recebia as mensagens de vários contatos pessoais (por WhatsApp, por exemplo ) para ingresso no Clubhouse era a de total novidade e exclusividade:

[11:50, 09/02/2021] Olá, eu acabo de me registrar no Clubhouse, não sei se você já está por lá!

[11:50, 09/02/2021] Assim que eu conseguir mais convites, posso te enviar. Você quer?

Mas justamente é aí que mora o perigo. Mesmo em chats fechados (porque não são acessíveis ao público da internet), usuários não se dão conta dos principais problemas já relatados nas mídias especializadas em tecnologia sobre o ClubHouse no Brasil e globalmente. Eles diretamente esbarram em direitos de usuários de internet e obrigações legais a serem cumpridas por qualquer empresa provedora de serviços de aplicações de internet. Alguns cenários podem ser desenhados para a jurisdição brasileira:

– Segundo os Termos de Serviço, Clubhouse grava as conversas (áudios) de seus usuários, o que poderia configurar não apenas violação de direitos de privacidade como também do sigilo nas comunicações no Brasil (todos protegidos pela Constituição, Marco Civil da Internet e tratados de que o Estado brasileiro é parte).

– O aplicativo não permite que o usuário delete informações que outros usuários (amigos) compartilham sobre ele e não oferece possibilidade de um usuário deletar sua conta; esse negativa poderia configurar recusa de serviços de internet ou obstáculos à resilição de um contrato de usuário (com potenciais violações ao Marco Civil e ao Código de Defesa do Consumidor, a depender do caso concreto).

– Os Termos de Serviço estabelecem mecanismo de solução de disputas já inadequado para redes sociais e seus membros, a arbitragem compulsória, que obriga o usuário a aceitar uma cláusula arbitral e remete as partes para procedimentos arbitrais da American Arbitration Association (AAA).

– O serviço oferecido pode utilizar as informações pessoais coletadas sem bases bem definidas de tratamento de dados em uma política de privacidade que não se encontra, por exemplo, em conformidade com as leis de proteção de dados, como a Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD. O mais arriscado é o fato do app não delimitar precisamente a obrigação de informar usuários sobre como seus dados são tratados, o que já poderia representar violação das regras do Regulamento Europeu de Proteção de Dados (GDPR) e da lei brasileira.

– Segundo a política de privacidade, o Clubhouse também rastreia o tráfego de dados envolvendo usuários sem explicar qual a finalidade, como a coleta de dados é feita, qual a modalidade de cookies aplicável, o que absolutamente vedado pelo Marco Civil da Internet e pela LGPD.

Outro risco nunca observado pelos mais entusiasmados, em especial, diz respeito às limitações injustificadas de funcionalidade.  O Clubhouse não permite que as conversas sejam salvas para que o usuário possa revisar o que disse ou ouvir posteriormente. É uma plataforma para interações ao vivo. O app passa a impressão de que não haveria rastros, pois o conteúdo “expira”, como hoje ocorre com alguns recursos de plataformas em relação a fotos de usuários que são enviadas em mensagens. Trata-se daquela sensação de que a instantaneidade resolveria o dilema “Pronto, falei!”.

Ao contrário, essas funcionalidades, em geral dificultam a vida de qualquer usuário de internet, como em casos em que ele poderia armazenar algo para fins de prova a ser utilizada em um processo administrativo, civil ou criminal, sem ter de buscar judicialmente medidas de requisição judicial de dados fundadas nos remédios estabelecidos pelo Marco Civil.  O app armazena tudo o que um participante da rede diz ou ouve, mas a ele não é dado o direito de revisar os dados de comunicação estabelecidas na plataforma. Futuramente, essa situação induzirá diferentes partes – os interlocutores e ouvintes, a plateia – a disputas judiciais.  E acreditem, mesmo com um público inicial de usuários “exclusivos”,  inspiradores ou celebridades, um app modelado a partir desse desenho aparentemente intuitivo, ‘clean’ e simples permanece palco para litígios e preocupações das autoridades regulatórias.

Os alertas não param por aqui. Segundo a Política de Privacidade de Clubhouse, o app ainda pode compartilhar dados associados às interações, que envolvem comunicação e níveis de privacidade, com terceiros, Na terceira seção (‘Sharing and Disclosure of Personal Data’), a política expressamente estabelece uma regra muito vaga, de que o app poderá compartilhar as categorias de Dados Pessoais descritas sem notificação ao usuário”. No caso brasileiro, há uma série de questões sensíveis que ainda serão enfrentadas pelos usuários, resultados da domesticação ou internalização da política de privacidade do Clubhouse e sua adequação efetiva à Lei Geral de Proteção de Dados. Poucos refletem sobre essas questões.  Mais recentemente, o site Cybernews informou que dados pessoais de cerca de 1,3 milhão de usuários do app foram expostos em banco de dados acessível pela internet, incluindo ID do usuário, nome, URL da imagem de perfil, conta em plataformas (Twitter, Instagram), número de seguidores, data de criação da conta e nome do perfil de onde partiu o convite para a rede. A regra oferecida pelo Clubhouse em sua política de privacidade, proibindo “raspagem” de dados não poderia estar apenas escrita, mas sim deveria ser praticada pela empresa a partir de travas de API (a interface de programação). Sem isso, o conjunto de dados pessoais de usuários passam a ser “públicos” e servem de matéria prima para a atividade delitual na internet, como prática de golpes, phishing, roubo de identidade e falsidade ideológica.

O ecossistema da internet no Brasil é robusto o suficiente para fazer com que o Clubhouse aprimore seus serviços de relacionamento social, e estabeleça as proteções necessárias para a comunidade brasileira. O entusiasmo, aqui, deve ocorrer para que inovações semelhantes trazidas pela febre Clubhouse façam a lição de casa, afinal o Brasil não deixa de ser uma das  comunidades digitais mais vibrantes e comercialmente atrativas do mundo. Esse caso de estudo permite que outras plataformas, como Linkedin, Facebook, Twitter, Facebook, Telegram, Slack e Discord, se arrastadas para imitar ou incrementar as funcionalidades aplicadas a salas de bate-papo por áudio e audiências do Clubhouse, reforcem termos de uso e políticas de privacidade. O marco legal brasileiro não oferece espaços para que desenvolvedores e provedores de aplicações incorram em práticas de ‘dumping digital’, com produtos e soluções que rebaixem os direitos de usuários, como aqueles relacionados aos padrões de privacidade e proteção de dados pessoais e sigilo das comunicações privadas.

Fabrício Bertini Pasquot Polido, professor Associado de Direito Internacional, Direito Comparado e Novas Tecnologias da Faculdade de Direito da UFMG. Doutor em Direito Internacional pela USP. Foi pesquisador do Instituto Max-Planck de Direito Internacional Privado e Comparado/Hamburgo e Instituto Weizenbaum para Sociedade Conectada. Professor visitante das Universidade de Kent, Reino Unido e Universidade Humboldt de Berlim. Advogado e Sócio das áreas de Inovação & Tecnologia e Solução de Disputas de L.O. Baptista.

Disponível em: https://tiinside.com.br/30/04/2021/euforia-ou-desconfianca-a-febre-clubhouse-e-os-desafios-para-o-marco-legal-digital-no-brasil/

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