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Quem criou o sigilo de 100 anos e como ele pode ser utilizado?

Quem criou o sigilo de 100 anos e como ele pode ser utilizado?

O Estado de S. Paulo
9/9/2022

Internacionalmente reconhecida como um experimento brasileiro autêntico, a Lei de Acesso à Informação (LAI) está em vigor desde 2011 e é produto legislativo da redemocratização do Estado brasileiro. Ela foi projetada com objetivo de fazer valer os direitos de acesso à informação em relação a certos atos de entes públicos e privados. A LAI concretiza remédios constitucionais específicos, como o habeas data e direitos fundamentais do cidadão.

Também faz parte da LAI o polêmico “sigilo de 100 anos”, que vem sendo debatido à exaustão nos últimos anos, mas ganha particular destaque em processos envolvendo despesas com pessoal do Executivo Federal e seus familiares, viagens aparentemente a serviços do Estado, status da vacinação de funcionários públicos e processos no âmbito eleitoral. Em nada esses aspectos se confundem ou podem ser confundidos com a proteção de direitos de titulares de dados pessoais e obrigações relativas à proteção de dados, conforme previstos na Lei Geral de Proteção de Dados- LGPD, e proteção da “intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais”, segundo o que prevê especificamente o art.31 da LAI.

No limite, muitos dos recentes casos envolvendo classificação sigilosa de documentos e processos sob controle dos órgãos públicos podem realmente resultar de abuso na prerrogativa desses órgãos como forma de ocultar determinadas irregularidades e desvios.

Mas, afinal, como foi introduzido o sigilo de 100 anos? Qual a diferença entre a LAI e a LGPD? Qual a importância das distinções?

Em primeiro lugar, é importante lembrar que a Lei de Acesso à informação alcança e obriga um número considerável de agentes:

I – os órgãos públicos integrantes da administração direta dos Poderes Executivo, Legislativo, incluindo as Cortes de Contas, e Judiciário e do Ministério Público;

II – as autarquias, as fundações públicas, as empresas públicas, as sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios (exemplos: a Petrobrás, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal etc)

III – entidades privadas sem fins lucrativos que recebam, para realização de ações de interesse público, recursos públicos diretamente do orçamento ou mediante subvenções sociais, contrato de gestão, termo de parceria, convênios, acordo, ajustes ou outros instrumentos congêneres.

A LGPD, por sua vez, é resultado de um amplo processo transnacional de adoção de leis nacionais de proteção de dados pessoais, fortemente influenciada pelas normativas da União Europeia. Mais recentemente, o movimento de privacidade de dados levou o constituinte a incluir um direito no rol de direitos e garantias individuais do Art.5º da Constituição da República – “o direito fundamental à proteção de dados pessoais”.

Um órgão da Administração, por sua vez, não pode negar informações relacionadas a um ato ou decisão do Poder Público, por exemplo, com fundamento plano ou interpretação literal da LGPD. Isso porque a própria LAI estabelece os requisitos para uma negativa. As restrições trazidas pela LGPD dizem respeito ao tratamento dos dados pessoais e dados sensíveis propriamente considerados; elas não podem servir de base para criar obstáculo para obtenção de informações sobre existência e o teor de processos administrativos e judiciais (a exceção dos casos envolvendo sigilo processual), pois dizem respeito a salvaguardas de titulares quanto a forma e procedimentos pelos quais seus dados pessoais são e serão tratados por empresas e órgãos públicos, incluindo o direito de solicitar correção e direito de explicação sobre como dados são tratados.

É importante ressaltar que a LAI não deixa de excepcionar situações envolvendo a “proteção da informação pessoal”. O art.6º da LAI contém importante referencial para esses casos de aparente “conflito”, sobretudo porque prevê que os órgãos e entidades do poder público, em suas regras/regulamentos e procedimentos, devem assegurar a proteção das informações pessoais, observada a sua “disponibilidade, autenticidade, integridade e eventual restrição de acesso”.

O Sigilo de 100 anos

É no art. 31º que se encontra o tão comentado sigilo de 100 anos. O artigo dispõe que “o tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais”. Além de conter, no inciso I que “terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de 100 (cem) anos a contar da sua data de produção, a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem”. A classificação de sigilo quanto ao acesso e o prazo máximo (até 100 anos), embora sejam de discricionariedade dos órgãos públicos referidos na LAI, podem ser revistos a qualquer tempo, seja pela própria Administração Pública, seja pelo próprio Judiciário.

Entretanto, é importante ressaltar que a Lei de Acesso à Informação deixa claro que a restrição (sigilo pelo prazo de até 100 anos) não poderá ser invocada com o intuito de prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância. Ou seja, caso exista suspeita de irregularidade, o sigilo pode – e deve – ser derrubado. Por exemplo, não se justificam à luz da regra do art. 31 da LAI, dentre outros, (i) sigilo sobre a existência e confirmação de matrícula de filhos de pessoas públicas expostas, como de parlamentares, do Presidente, em escolas públicas ou privadas; (ii) sigilo nos processos que investiga atos de desvios de dinheiro público, peculato e apropriação indébita, como nos esquemas de “rachadinhas” em assembleias de deputados estaduais e câmaras de vereadores; (iii) reuniões realizadas entre agentes públicos e funcionários ministeriais com entes privados, associações religiosas e fundações que supostamente seriam favorecidos por alocação de recursos públicos (caso do MEC); (iv) e-mails funcionais sobre mensagens que têm conteúdo de interesse público e que digam respeito a processos administrativos e judiciais, integrando o corpo dos documentos processuais, incluindo investigações.

Quem pode classificar uma informação como sigilosa no direito brasileiro?

No artigo 27 da LAI, há a informação sobre quem pode classificar, reclassificar ou desclassificar o sigilo. Ou seja, além de determinar quem pode decretar sigilo de 100 anos sobre informações, ela prevê quem pode derrubar esses sigilos.

A classificação do sigilo de informações no âmbito da administração pública federal é de competência:

I – no grau de ultrassecreto, das seguintes autoridades:

a) Presidente da República;

b) Vice-Presidente da República;

c) Ministros de Estado e autoridades com as mesmas prerrogativas;

d) Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica; e

e) Chefes de Missões Diplomáticas e Consulares permanentes no exterior;

II – no grau de secreto, das autoridades referidas no inciso I, dos titulares de autarquias, fundações ou empresas públicas e sociedades de economia mista; e

III – no grau de reservado, das autoridades referidas nos incisos I e II e das que exerçam funções de direção, comando ou chefia, nível DAS 101.5, ou superior, do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores, ou de hierarquia equivalente, de acordo com regulamentação específica de cada órgão ou entidade, observado o disposto nesta Lei.

Por que o escopo do sigilo deve ser reduzido e os excessos no Brazil preocupam?

Tecnicamente, o objetivo da classificação é a proteção da informação e sua relevância para certos interesses, como segurança pública, integridade física e psíquica de indivíduos, registros da condição de saúde de indivíduo e investigações criminais. Existem relativizações, considerando pessoas politicamente expostas, mandatários de poder, que pela posição pública, devem prestação de contas ao público. Por isso, casos recentes envolvendo o Presidente Jair Bolsonaro não seriam justificáveis segundo a LAI brasileira.

Nos Estados Unidos, desde os tempos da Segunda Guerra Mundial, houve uma elevação de camadas de proteção dessas informações, hoje listadas na Medida Executiva 13526 – são classificações mais protetivas, pois referem-se a informação que podem pôr em perigo a segurança nacional se divulgadas. A classificação que constitui “segredo de Estado” estabelece diferentes níveis de proteção com base nos danos esperados que a informação pode causar se revelada/divulgada ou cair nas mãos erradas. Por exemplo, quando uma agência governamental nos EUA designa um programa como confidencial, ela declara a titularidade sobre as informações, passando considerar qualquer divulgação ou disponibilidade pública como violação de sua propriedade. O mesmo ocorre em relação ao grau ultrassecreto de uma operação conduzida pelo serviço militar nos Estados Unidos em relação às investigações de organizações terroristas.

Com o passar do tempo, no entanto, muitas informações classificadas tornaram-se menos sensíveis, podendo ser desclassificadas e tornadas públicas.  Desde as décadas de 1980 e 1990, com o aumento do número de leis e regulamentos estabelecendo direitos individuais e liberdade de informação ao redor do globo, o público foi legitimado a solicitar direitos relativos a informações que não são consideradas prejudiciais se divulgada e que faça parte de prerrogativas de transparência e prestação de contas. Documentos e autos de processos são divulgados com informações ainda consideradas confidenciais obscurecidas (redigidas), como no exemplo adjacente.

Existe a questão entre alguns especialistas em Ciência Política e Direito de saber se a definição de informação secreta deve ser informação que possa causar danos à custa da administração da justiça, proteção de direitos humanos vs. informação que possa causar danos ao interesse nacional. A questão central parece ser a de necessária distinção entre o grau de classificação da informação é interesse coletivo de uma sociedade, ou meramente do interesse de um grupo que age injustificadamente para proteger seus governos e funcionários administrativos contra recursos constitucionais e legítimos condizentes com expectativas da justiça, direitos humanos, transparência e prestação de contas. Basicamente, existe um pacto democrático, em que garantias legais e processuais são asseguradas, mas não podem ser levantadas para mascarar ilegalidades.

O caso brasileiro refletindo abusos da aplicação da LAI veio cruzando governos, desde a era Dilma Rousseff até Jair Bolsonaro; no caso do último, além do sigilo dos cem anos do art.31 da LAI, a preocupação também recai sobre as confusões com a LGPD, como na justificativa para informações e documentos sigilos envolvendo o Presidente da República sob argumento bastante inconsistente de que a publicidade de informações colocaria sua vida em risco. Órgãos públicos, por sua vez, não devem apenas manter registros e dar publicidade sobre entrada e saída de pessoas públicas. Eles devem facilitar o acesso pelos cidadãos a respeito da agenda e atos/decisões praticadas pelos agentes públicos no exercício de suas funções públicas, administrativas e governamentais.

Nos Estados Unidos, a discussão parecida tem sido travada, particularmente em vista do decreto executivo do Presidente Biden que determinou a divulgação de documentos e processos sigilosos relativos aos atentados terroristas de 11 de setembro de 2011, e que alcançam funcionários do FBI e Departamento de Justiça. Do outro lado, existe uma movimentação da sociedade civil organizada, sobretudo em defesa das vítimas, de fazer valer direitos constitucionais de modo a revelar os possíveis envolvimentos de agentes de Estado nos desdobramentos do evento que modificou a rota da história mundial.

Resta saber se para o Brasil o mesmo poderia ser dito, se nossas prioridades, em termos de fazer valer as leis e regras constitucionais vigentes, poderiam justificar maior pressão sobre os órgãos públicos. Por que não uma revisão geral sobre as decisões de classificação de sigilo de 100 anos?

*Fabrício Polido, sócio de Inovação & Tecnologia e Solução de Disputas de L.O.Baptista. Professor associado de Direito Internacional, Novas Tecnologias e Direito Comparado UFMG

Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/quem-criou-o-sigilo-de-100-anos-e-como-ele-pode-ser-utilizado/

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