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A lei alemã não é um bom modelo para a internet no Brasil

A lei alemã não é um bom modelo para a internet no Brasil

16/11/2020

ConJur

 

Por Fabrício Bertini Pasquot Polido

Os debates legislativos sobre o Projeto de Lei nº 2630/2020 no Congresso Nacional (Lei de Liberdade, Responsabilidade e Transparência) abrem oportunidades para que o Brasil reflita sobre as verdadeiras necessidades da internet e não caia na armadilha de importar modelos legislativos para nossa realidade e comunidade digitais. Como tudo em matéria de política normativa, é importante conhecer melhor os riscos derivados da reprodução e adaptação de leis e decisões de outros Estados, por mais sofisticadas que elas pareçam ser. Para além de méritos que o PL nº 2630/2020 poderia apresentar, traduzidos por assessoria especializada aos parlamentares proponentes, a iniciativa não reflete o pano de fundo e os desdobramentos da lei alemã que seria sua inspiração, a NetzDG  (Lei de Aperfeiçoamento da Aplicação das Leis nas Redes Sociais), em vigor desde 1º de janeiro de 2018, e já em sua segunda iniciativa de reforma legislativa.

Ao longo de seu curto período de vigência, a NetzDG não deveria ser celebrada por alguns parlamentares e proponentes no Brasil, como fez o acadêmico Ricardo Campos em seu artigo. Ela foi e continua sendo duramente criticada por respeitados juristas e acadêmicos alemães e estrangeiros, pelas relatorias internacionais das Nações Unidas, por documentos de organizações da sociedade civil em direitos humanos e, igualmente, pelos próprios órgãos comunitários da União Europeia. Na vizinha França, a Lei contra o Discurso de Ódio na Internet, de maio de 2020, foi praticamente toda declarada inconstitucional em seus dispositivos que imitaram a lei alemã. Em tantos países, de regimes reconhecidamente autoritários e antidemocráticos, a NetzDG foi utilizada para legitimar exposição de motivos e moldar regras das leis aprovadas para controle da internet e do comportamento dos usuários, bem como monitorar e perseguir cidadãos e opositores políticos. A própria NetzDG alemã, em sua última reforma, estabelece a obrigação de plataformas de notificar autoridades criminais sobre a atuação de usuários e conteúdo de discursos e postagens que sejam considerados infrativos. Saindo do forno agora no final de agosto, solução espelhada na NetzDG foi dada, em sua pior fórmula derivativa, pelo governo de Erdogan, na Turquia. Outros países também adotaram a lei alemã como fonte direta de inspiração, entre eles regimes como Venezuela, Vietnã, Rússia, Quênia, Malásia e Filipinas, todos esses classificados pela organização internacional Freedom House como não livres ou apenas parcialmente livres no que se refere à liberdade na internet.

Volto a opinar que a Alemanha fez gol contra. Sobre isso quase nada tem sido falado no Brasil, infelizmente. Na escolha dos rumos de política legislativa e orientações jurisprudenciais espelhados em outros países, o caminho deve ser sempre de curiosidade, abertura ao novo, mas de muita cautela. A escolha de política legislativa vai muito além do que técnica. O desconhecimento a respeito dos modelos e designs institucionais de países da Europa, Estados Unidos e China para validar nossos experimentos locais e práticas das instituições apenas fragilizam o nosso próprio sistema jurídico. No caso do PL 2.630/2020, e mesmo em relação aos ataques que o Marco Civil da Internet passou a sofrer nos últimos meses, a defesa de liberdades comunicativas e informativas, a privacidade de usuários e cidadãos, e bases democráticas do uso da internet e desenvolvimento da economia digital parecem ter se tornado uma afronta aos paladinos da moral discursiva forjada pela mídia tradicional. Ela se mobiliza para atacar entes governamentais, a academia, organizações da sociedade civil e setores da indústria, como se todos não valessem no jogo democrático. Certos veículos de comunicação, por exemplo, censuram a divulgação de informações e notícias sem qualquer contrapartida cidadã e de transparência nas plataformas. O Congresso tem deixado de lado a necessária discussão sobre reforma do sistema de comunicação social, sacramentando a fragilização do ethos público, transparente e concorrencial que deveria pautar, por exemplo, as entidades de radiodifusão no tecido constitucional brasileiro. Também os parlamentares há muito se abstêm de qualquer iniciativa para revisar os modelos proprietários cimentados pelo artigo 222 da Constituição. Da mesma forma, preocupar-se com a preservação e bom funcionamento de instituições do Judiciário, com a legitimidade e constitucionalidade do controle judicial para solução de conflitos que surjam no ambiente digital, tornou-se ofensa generalizada. Há quem normalize o indefensável: que agentes privados sejam compelidos legalmente para monitorar cidadãos e decidir sobre os conflitos relacionados às liberdades e garantias individuais. Perguntaria aos juristas constitucionalistas brasileiros, como fizeram os franceses: essas fórmulas não violam direitos fundamentais de usuários de internet e garantias de tratamento isonômico e não discriminatório para empresas?

Nesse ponto, o caso da NetzDG alemã parece justamente emblemático. A lei não objetivou “autorregulação regulada”, mas, sim, remediar, sem antídoto, conflitos sociais e políticos emergentes na decadência democrática europeia. De que maneira seria aceitável que empresas de internet, passando a monitorar o comportamento de usuários, possam produzir provas para incriminar particulares, cidadãos e servir de bedel informacional para as autoridades criminais? Por mais que se defenda que riscos de bloqueios e remoções exageradas não foram verificados em concreto na Alemanha nesses dois anos de vigência da NetzDG, ainda resta a sensação de que soluções de monitoramento e controle, como as trazidas no atual PL 2630/2020, ressuscitem corpos indesejados no Brasil. Não há consenso sobre o futuro da lei alemã, à exceção do barulho causado e pelo fato de ela continuar a emprestar autoridade moral para adoção de medidas restritivas às liberdades por países autoritários. A Alemanha, por seus compromissos democráticos com uma influente Constituição — a Lei Fundamental de 1945 — provavelmente não dará margem para externalidades negativas. Sua corte constitucional ainda terá tempo para controle judicial da NetzDG, inclusive quanto à violação de direitos fundamentais de usuários e empresas. Não se pode universalmente aceitar o frágil argumento, transposto para o legislador e público brasileiros, de que após dois anos de vigência e reformas legislativas a lei alemã esteja caminhando muito bem. Nada pode ser tão previsível no ambiente político e social na Europa, como experimentado nos últimos anos, que seja tão seguro e fortificado.

Entre nós, no Brasil, restará a expectativa de que o Congresso Nacional e os tribunais brasileiros reflitam com parcimônia, critérios e sentimento de libertação das amarras das fórmulas importadas. O respeito aos direitos de usuários de internet e o fortalecimento do marco legal digital têm sido gradualmente construídos desde a redemocratização brasileira. Eles passam pela força da Constituição, pelos modelos inovadores das Leis de Acesso à Informação, do Marco Civil da Internet, das leis e regulamentos de proteção do consumidor online, do respeito às normas de tratados e convenções em matéria de direitos humanos e, mais recentemente, o entusiasmo com o papel da Lei Geral de Proteção de Dados. Recomendo a devida crítica para que arranjos institucionais e referenciais sociais, políticos e econômicos de outros países não sejam travestidos segundo um selo da “modernidade da lei”. No limite, eles também mascaram e pulverizam efeitos e usos deturpados pelas democracias e para além delas.

Fabrício Bertini Pasquot Polido é sócio da área Inovação e Tecnologia do escritório L.O. Baptista Advogados, professor da Universidade Federal de Minas Gerais e doutor em Direito Internacional pela USP.

Disponível em: conjur.com.br/2020-nov-16/polido-lei-alema-nao-bom-modelo-internet-brasil

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