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Aquisição de imóveis rurais por capital estrangeiro

Aquisição de imóveis rurais por capital estrangeiro

Jota.info. colunas
05.04.2017

Prática reacende debates políticos antigos

Roberta Hanna Rached

A venda de porções de terras rurais a investidores estrangeiros não é um tema novo, pelo contrário. Recentemente, no entanto, houve um aumento na procura por terras rurais, por parte dos estrangeiros, geralmente localizadas nos países em desenvolvimento. De acordo com dados do Banco Mundial, 56 milhões de hectares em terras rurais foram negociados somente em 2009, um aumento considerável em relação aos 4 milhões de hectares de terras que, em média, eram comercializados por ano.

Este mesmo estudo aponta que 70% da demanda por terras rurais concentrou-se no continente Africano, em países como Moçambique, Etiópia e Sudão (Banco Mundial, 2011, p. xiv). Para muitos, o evento que desencadeou a corrida global por terras rurais foi o aumento no preço das commodities agrícolas entre 2007 e 2008. Frente à insegurança causada pela volatilidade no preço das commodities, países industrializados, dependentes da importação de alimentos, bem como investidores privados, passaram a procurar alternativas para assegurar o fornecimento ininterrupto de alimentos e biocombustíveis.

O termo em inglês que resume tal prática – land-grabbing – é bastante controverso, mas, ainda sim, muito utilizado pela literatura especializada e refere-se às “transações comerciais (trans)nacionais de terras para a produção e exportação de, principalmente, mas não exclusivamente, alimentos e biocombustíveis” (Borras e Franco, 2012, p. 34).

Tal prática, como não poderia deixar de ser, reascende debates políticos antigos. De um lado, estão aqueles que se posicionam contrariamente ao processo de aquisição de terras rurais pelo capital estrangeiro em razão dos passivos ambientais (utilização de recursos naturais finitos, como água e terra) e sociais (perda de terras cultiváveis por pequenos produtores) impostos aos países que recebem tais investimentos. De outro, estão os que ressaltam as consequências benéficas das aquisições de terras rurais, tais como o aumento de empregos, a criação de infraestrutura local e maiores oportunidades para transferência de tecnologia.

Apesar da aquisição de terras rurais por estrangeiros tocar em pontos sensíveis para o desenvolvimento rural, a segurança alimentar e a redução da pobreza, o Brasil permanece à margem de uma discussão mais profunda sobre a matéria, especialmente em razão de mudanças interpretativas que se arrastam há anos no setor.

Do ponto de vista legal, e de forma bem resumida, a Lei 5.709/1971 e suas regulamentações impõem restrições à aquisição/arrendamento de terras rurais por estrangeiros residentes no Brasil ou por pessoas jurídicas estrangeiras autorizadas a funcionar no Brasil. Nos termos da lei, as restrições também se aplicam às empresas nacionais cuja maioria do capital pertença a estrangeiros residentes no exterior. A legislação, por exemplo, impõe que as operações de compra/arrendamento não excedam a 50 módulos de exploração indefinida (MEI), em área contínua ou descontínua. Já as pessoas jurídicas estrangeiras só podem adquirir/arrendar imóveis rurais destinados à implementação de projetos industriais (caso em que o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior deve ser ouvido), projetos agrícolas, pecuários e de colonização (caso em que o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento deve ser ouvido). Se a área for superior a 100 MEI, a operação deve, ainda, ser autorizada pelo Congresso Nacional, não podendo a soma das áreas rurais reservadas a pessoas estrangeiras ultrapassar 25% da superfície dos municípios onde estão localizadas, em se tratando de estrangeiros de diferentes nacionalidades ou 10% da superfície dos municípios, se estrangeiros de mesma nacionalidade. As aquisições e os arrendamentos de terras por estrangeiros que violem as prescrições legais são nulos de pleno direito.

Adicionalmente às restrições acima mencionadas, a lei 5.709/71 impõe aos cartórios de registro de imóveis a obrigação de manter um cadastro especial e de remeter informações, trimestralmente, à corregedoria do Poder Judiciário do Estado, ao Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento e, no caso de imóvel localizado em área indispensável à segurança nacional, também à Secretaria Executiva do Conselho de Defesa Nacional.

Com a promulgação da Constituição Federal, em 1988, muito se discutiu se a Lei 5.709/71 permaneceria aplicável às empresas nacionais de capital estrangeiro, já que o artigo constitucional 190 estabelece que as restrições e limitações à aquisição/arrendamento de imóveis rurais se aplicaria tão somente a estrangeiros, pessoas físicas e jurídicas.

Sobre as discussões envolvendo a recepção ou não do texto legal, a Advocacia-Geral da União (AGU) em 1994, emitiu o Parecer AGU/LA-04/94, posteriormente ratificado pelo Parecer GQ 181/98, defendendo a não recepção do texto legal. Anos depois, a AGU, em 2010, mudou seu entendimento com o Parecer CGU/AGU 01/2008, confirmando que as empresas nacionais com capital estrangeiro estariam sim sujeitas às restrições da Lei 5.709/71. De acordo com o Parecer, a manutenção de um controle efetivo sobre as aquisições de terras realizadas por empresas brasileiras cujo controle acionário pertença a estrangeiros residentes no exterior teria um “caráter estratégico” e evitaria os seguintes efeitos:

a)     expansão da fronteira agrícola com o avanço do cultivo em áreas de proteção ambiental e em unidades de conservação;

b)     valorização desarrazoada do preço da terra e incidência da especulação imobiliária gerando aumento do custo do processo desapropriação voltada para a reforma agrária, bem como a redução do estoque de terras disponíveis para esse fim;

c)     crescimento da venda ilegal de terras públicas;

d)     utilização de recursos oriundos da lavagem de dinheiro, do tráfico de drogas e da prostituição na           aquisição dessas terras;

e)     aumento da grilagem de terras;

f)      proliferação de “laranjas” na aquisição dessas terras;

g)     incremento dos números referentes à biopirataria na Região Amazônica;

h)     ampliação, sem a devida regulação, da produção de etanol e biodiesel;

i)       aquisição de terras em faixa de fronteira pondo em risco a segurança nacional.

Com relação a este Parecer de 2010, não tendo ele caráter vinculativo para os tabelionatos de notas e registros de imóveis, a Corregedoria Nacional de Justiça determinou, também em 2010, que os referidos órgãos observassem e cumprissem com o quanto estabelecido na Lei 5.709/71. Tantas idas e vindas produziram consequências jurídicas preocupantes. Uma delas foi a ausência de manutenção e controle do cadastro especial das aquisições de terras rurais por pessoas estrangeiras pela maioria dos cartórios de imóveis do país, conforme determina o art. 10, da Lei 5.709/71 (Cf. Sauer e Borras, 2016, p. 23). Ora, se um dos objetivos da regulação sobre aquisição de terras rurais por estrangeiros é conhecer quem, onde e o motivo pelo qual certa porção de terra foi adquirida, a falta de manutenção e controle deste cadastro especial colocam à prova todo o arcabouço regulatório do setor.

O último episódio sobre a questão iniciou em 2012, quando a Corregedoria Geral do Estado de São Paulo emitiu o Parecer 461/12-E dispensando os tabeliães e oficiais de registro do Estado de São Paulo de observarem a Lei 5.709/71 para as empresas nacionais com capital estrangeiro. Em 2014, a AGU e o Instituto Nacional de Colonização (INCRA) ajuizaram no Supremo Tribunal Federal (STF) uma ação contra o Estado de São Paulo visando a declaração de nulidade da orientação normativa contida no Parecer 461-12-E. O STF determinou o aparelhamento da referida ação com outra ajuizada pela Sociedade Rural Brasileira, que é a arguição de descumprimento de preceito fundamental 342.

Simultaneamente e paralelamente à discussão legal acima apresentada, é de se notar que há inúmeros e diferentes projetos de leis envolvendo o assunto, seja pela liberação geral de venda de terras rurais aos estrangeiros em busca de seus  investimentos, seja pela liberação com certas restrições. E, por mais que futura decisão judicial do STF venha a constituir um importante precedente jurisprudencial no setor, o poder legislativo precisará, certamente, preencher diversas lacunas e dúvidas que contornam o tema.

Só assim é que as restrições impostas à aquisição de terras rurais por estrangeiros produzirão os efeitos desejados e permitirão aos estrangeiros adquirir terras rurais de forma legítima e adequada ao processo de desenvolvimento do Brasil.

Roberta Hanna Rached – Advogada da área Societária do L.O. Baptista Advogados

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