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Câmaras de arbitragem: sua briga é o nosso negócio

Câmaras de arbitragem: sua briga é o nosso negócio

06Exame
28/02/2019

Por — Naiara Bertão

As câmaras privadas de arbitragem tiveram em 2018 seu melhor ano no Brasil, impulsionadas pela crise e pela lentidão do Judiciário

Brigas entre sócios, discordâncias sobre contratos e problemas em fusões e aquisições. Se antes empresas e empresários ficavam presos em lentos e trabalhosos processos no Judiciário, de uns anos para cá descobriram uma alternativa mais rápida para resolver os conflitos: a arbitragem. Em 2018, o número de processos novos e em andamento nas câmaras arbitrais do Brasil bateu recorde. De acordo com levantamento feito por EXAME com base em dados enviados pelas oito principais câmaras em atuação no país, pelo menos 293 novos processos foram iniciados no ano passado.

O número é maior do que o visto em 2017, de 289, e reforça uma tendência de alta iniciada em 2010. Daquele ano até 2017, o número de novos casos de arbitragem em seis das principais câmaras do Brasil chegou a 1  567, somando 87 bilhões de reais em litígios, segundo estudo feito pela professora Selma Lemes, da Fundação Getulio Vargas. “O mercado deve crescer ainda mais neste ano. Estamos, inclusive, abrindo um escritório no Rio de Janeiro para atender à demanda de lá”, diz Carlos Forbes, presidente do Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá, o maior desse tipo no país.

Na teoria, qualquer disputa pode ser levada para uma arbitragem. Basta que as partes envolvidas num negócio concordem em colocar uma cláusula explicitando isso na hora de firmar um contrato, citando a câmara arbitral escolhida para mediar um eventual desentendimento. Os custos são divididos entre as partes. Em geral, são três árbitros por processo — cada parte escolhe um, e o nome do terceiro pode ser por consenso dos envolvidos ou uma escolha dos outros dois árbitros. O crescimento recente é fruto de uma combinação de fatores, que vai do maior profissionalismo das câmaras e dos árbitros à percepção de que é mais vantajoso, apesar de mais caro, correr por fora do Judiciário.

A crise também contribuiu para o aumento de pleitos, já que muitas empresas em dificuldade rescindiram contratos ou ficaram inadimplentes. Alegando imprevisibilidade da economia, sócios também pediram para refazer termos de contrato. “A arbitragem tornou-se um importante instrumento de resolução de disputa, mais rápido, transparente e com custos previsíveis, com a vantagem de ser aceito em quase todo o mundo”, diz Adriana Braghetta, sócia da área de arbitragem do L.O. Baptista Advogados.

Os processos que não envolvem o setor público são, por lei, sigilosos, mas os mais relevantes acabam vindo à tona. A arbitragem ficou em evidência com casos como o da fabricante canadense de celulose Paper Excellence contra o grupo brasileiro J&F. Em setembro de 2018, um ano depois de a multinacional comprar a fabricante de celulose Eldorado da J&F, o negócio ainda não havia sido fechado. Segundo a Paper, a vendedora não tinha saneado as dívidas da Eldorado, conforme acordado em contrato de 2017.

Uma arbitragem corre na Câmara de Comércio Internacional. Outro caso que ganhou os jornais foi o da produtora de lácteos Vigor com a Cooperativa Central dos Produtores Rurais de Minas Gerais (CCPR) pela venda da fabricante de laticínios Itambé para a francesa Lactalis. Vigor e CCPR eram sócias na Itambé até dezembro de 2017, quando a cooperativa exerceu o direito de comprar a metade da sócia e vendeu, no dia seguinte, a companhia à Lactalis. Alegando que a venda feriu o acordo de acionistas, a Vigor entrou com um processo judicial e, em junho passado, a Justiça suspendeu a venda até a decisão de um tribunal arbitral. O caso corre na Câmara Brasil-Canadá. As empresas não comentam.

A área societária, que envolve aquisições e fusões de empresas e acordos entre sócios, é a que mais demanda o serviço. Segundo levantamento do escritório L.O. Baptista Advogados, dos 673 casos novos registrados nas seis principais câmaras de arbitragem de 2016 até outubro do ano passado, 258 eram disputas entre sócios. Também recorrem cada vez mais ao instrumento empresas de infraestrutura e construção civil. Estádios erguidos para a Copa do Mundo de 2014, entre eles Arena da Amazônia (Manaus), Arena Corinthians (São Paulo), Arena Pernambuco (Grande Recife) e Maracanã (Rio de Janeiro), são alguns exemplos de obras que resultaram em litígios arbitrais. Esses processos envolvem desentendimentos sobre quem deve arcar com multas e estouro do orçamento das obras. “No escritório, 95% dos contratos grandes, acima de 10 milhões de reais, têm cláusulas de arbitragem”, diz Joaquim Muniz, sócio do escritório Trench Rossi Watanabe.

Apesar de o Brasil ter uma lei própria para arbitragem desde 1996, até 2001 esse instrumento costumava ser usado só para contratos que envolviam mais de um país. Naquele ano, porém, o Supremo Tribunal Federal julgou um processo em que declarou a constitucionalidade da lei de arbitragem. Quem decide usar esse meio para resolver um conflito não pode questionar na Justiça o resultado, a menos que duvide da integridade do próprio árbitro e peça sua impugnação, algo que raramente ocorre. “A decisão do Supremo referendou a legislação e deu mais confiança para empresários e advogados optarem por esse caminho”, diz Selma Ferreira Lemes, professora da Faculdade de Direito da Fundação Getulio Vargas e -coautora da Lei Brasileira de Arbitragem.

Tendência mundial

Até 1995 só existia no Brasil a Câmara Brasil-Canadá, criada em 1979. Hoje há dezenas. Muitas começaram dentro de associações comerciais e industriais, como a da Ciesp/Fiesp, e de comércio exterior, a exemplo da Amcham, a câmara de comércio americana, e a recém-criada Câmara de Comércio e Indústria Brasil-China, dedicada a resolver conflitos entre os dois países. Lá fora, a mais conhecida e maior é a International Chamber of Commerce (ICC), sediada em Paris, mas com escritórios em Hong Kong, Nova York, Singapura e, de outubro de 2017 para cá, em São Paulo. Desde sua fundação, em 1923, já foram registrados 24.000 casos na ICC.

Em 2017, o Brasil ocupou o quarto lugar como origem de casos, com 115 partes de processos, atrás de França, Alemanha e Estados Unidos. Foi na ICC que o empresário brasileiro Abilio Diniz e o grupo varejista francês Casino se enfrentaram de 2011 a 2013. O trâmite durou até que, em setembro de 2013, as partes chegaram a um acordo e Diniz renunciou à presidência do conselho de administração do Grupo Pão de Açúcar. O processo envolveu mais de uma dezena de escritórios de advocacia. No Brasil, a ICC já tocou 40 disputas, envolvendo um total de 13 bilhões de reais. Já é, assim, a terceira maior câmara do país. A maior é a Brasil-Canadá, que em dois anos recebeu 242 disputas, com 26 bilhões de reais em questão.

A arbitragem é mais cara do que a Justiça comum. Um processo com litígio de 50 milhões de reais custa aproximadamente 400.000 para cada uma das partes, valor que inclui as taxas de registro e administração e os honorários do próprio tribunal arbitral. No Judiciário paulista, um processo como esse pode custar 160.000 reais. A vantagem está na agilidade. Ainda que tenham imbróglios mais demorados, como o conflito entre o terminal portuário Libra e a Companhia Docas do Estado de São Paulo, que terminou em janeiro após mais de três anos (com resultado favorável à Docas), a média de duração é de 16 a 24 meses, metade do tempo médio no Judiciário, segundo advogados. “O período de tramitação é significantemente menor por não haver recursos”, diz Luciano Godoy, árbitro e sócio do escritório PVG Advogados.

Para ter agilidade, as câmaras colocam um profissional para cuidar dos trâmites operacionais de cada caso. Não é preciso esperar meses por uma audiência. As empresas também podem escolher árbitros especialistas em seu setor e que falem mais de um idioma. As câmaras em geral têm listas de árbitros indicados, mas as partes podem, a rigor, escolher qualquer pessoa. Algumas câmaras são ainda especializadas em determinados tipos de conflito. A carioca CBMA, por exemplo, é a principal câmara de arbitragem do Brasil no setor desportivo e tem sete arbitragens em andamento na área. É a câmara que administra, por exemplo, conflitos que envolvem a Confederação Brasileira de Futebol e a Confederação Brasileira de Basquete. Outra, a Camarb, tem 40% dos casos vindos de contratos de infraestrutura e construção. A FGV é conhecida por mediar casos do setor elétrico.

O crescimento tem levado a uma sofisticação do mercado. Há no Brasil pelo menos três empresas que financiam arbitragem: a brasileira Leste, a peruana Lex Finance e a recém-chegada Harbour Litigation Funding, britânica. “Financiar arbitragem é, em muitos casos, uma estratégia para gerir melhor o caixa da empresa, até porque muitas estão envolvidas em vários processos ao mesmo tempo”, diz Leonardo Viveiros, fundador da Leste, que tem no portfólio 16 casos. Se a decisão for favorável ao cliente, a financeira recebe um percentual do valor da causa, que varia de 10% a 20%. Se for desfavorável, não recebe nada. “O país é parte de nossa estratégia de crescimento, não apenas por possuir uma lei bem elaborada e um Judiciário favorável, mas também por ser uma economia em crescimento”, diz Renata Duarte de Santana, representante da Harbour no Brasil.

Uma tendência que deve impulsionar a arbitragem é a entrada de casos de valores menores. Algumas câmaras, como a Brasil-Canadá, já dão opção de mediação com apenas um árbitro que custa quase metade do preço, e a Ciesp/Fiesp trabalha com uma tabela progressiva para tornar viáveis procedimentos de valor menor. Também está se popularizando o serviço de mediação, em que as partes se reúnem com um mediador para tentar chegar a um acordo sem ter de ir para uma arbitragem ou judicializar o conflito. Outra aposta das câmaras são os casos de administração pública e os trabalhistas, impulsionados por mudanças recentes na legislação. Por isso, a Camarb vai inaugurar em breve um novo escritório em Brasília. “O Brasil vive uma revolução silenciosa na esfera judicial. Há uma lei moderna, e apoio do Judiciário, autonomia e agilidade”, diz a professora Selma Lemes. Nunca foi tão fácil brigar.

A REAÇÃO DO JUDICIÁRIO

A maior procura pelos serviços privados de arbitragem e mediação está forçando o Poder Judiciário a melhorar os serviços oferecidos na análise de processos relacionados a práticas empresariais. No final de 2017, o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu criar, no Fórum João Mendes Júnior, no centro da capital paulista, a 1a e a 2a Varas Empresariais e de Conflitos Relacionados à Arbitragem e a 3a Vara de Falências e Recuperações Judiciais. Antes, as ações eram distribuídas entre 40 varas cíveis no fórum.

A concentração nas varas especializadas favorece a uniformização dos entendimentos sobre as questões jurídicas, estimula os juízes a buscar uma formação direcionada para as matérias que precisam avaliar e dá mais segurança e previsibilidade para advogados e empresários, segundo Rogerio Murillo Pereira Cimino, juiz titular da 1a Vara. “O objetivo foi facilitar a vida do cidadão, acelerando os trâmites”, diz Cimino. Por mês, cada uma dessas varas recebe cerca de 80 processos, todos digitalizados — mais um avanço em relação a outros tribunais. Assim, o tempo de julgamento de um caso até a segunda instância pode ser até menor do que na arbitragem, que dura de um ano e meio a dois anos. Na média, a Justiça comum leva quatro anos para chegar a uma decisão.

Os esforços do Poder Judiciário têm sido percebidos e elogiados pelos advogados da área empresarial. “O caminho é bastante positivo no tribunal paulista. Temos de fato visto que as decisões estão mais rápidas e consistentes”, diz Tiago Cortez, sócio do escritório KLA Advogados especializado em contencioso e arbitragem. Uma das desvantagens da arbitragem em relação à Justiça comum, segundo Cortez, é que o sistema privado acaba consumindo mais tempo dos empresários. Demanda um grande volume de produção de provas e requer a realização de audiências com executivos que podem levar dias. No Judiciário, as audiências geralmente são mais breves. Advogados consultados por EXAME afirmam que varas especializadas têm surgido também em Brasília e no Rio de Janeiro. Na reação à concorrência, o Judiciário que tarda também falha.

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