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Política digital e o ingresso do Brasil na OCDE

Política digital e o ingresso do Brasil na OCDE

Jota
21/3/2022

Além de muito esperado, o processo de acessão do Estado brasileiro à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) tem sido destaque nos meios acadêmicos e de mídias especializadas, em especial pela integração de nosso país a uma das mais importantes organizações multilaterais vigentes.

Atualmente, a OCDE conta com 38 membros, dentre os quais Reino Unido, França, Alemanha, Estados Unidos e Japão, e se abre para novos candidatos. Em 2017, o Brasil formulou seu pedido formal de acessão à OCDE, após sucessivas tratativas iniciadas na década de 1990 pelo Poder Executivo, passando pelos governos FHC, Lula, Dilma Rousseff e Michel Temer.

Antes de ser tratada — equivocadamente — como novidade do mandato de Jair Bolsonaro, a entrada na OCDE completaria a lista de participação do Brasil em organismos multilaterais que se dedicam a políticas normativas, ações e estratégias em áreas relacionadas a investimentos, comércio, empresas e desenvolvimento. Ingressar na OCDE é simbolicamente completar o conjunto das instituições multilaterais do “sistema internacional econômico”, ao lado do Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e Organização Mundial do Comércio.

Para que o Brasil seja admitido à OCDE, é necessário que os Estados-membros atuais, por consenso, aceitem a candidatura e deliberem pela abertura do processo de acessão. Desde 2017, o Brasil aguardava essa decisão pelo Conselho da OCDE. Em 25 de janeiro de 2022, as discussões foram iniciadas e a candidatura do Brasil será avaliada por comissões temáticas. Essas comissões revisarão as leis e práticas brasileiras a partir de procedimentos que analisam o cumprimento de diretrizes e recomendações da OCDE em diversos setores, como meio ambiente, saúde, mercados, responsabilidade fiscal, tributação, combate à corrupção, proteção da concorrência e consumidor. A OCDE, por sua vez, conta com 253 instrumentos jurídicos na atualidade, entre tratados e convenções, decisões, declarações, recomendações e diretrizes. Durante décadas o Brasil veio trabalhando para internalizar esses instrumentos, aderindo a mais de 80 deles.

A candidatura do Brasil para acessão à OCDE caminhará ao lado das discussões sobre adesão de outros candidatos, com orientações publicadas em janeiro deste ano no documento “Quadro de Considerações sobre Membros Prospectivos”. Nele, a OCDE analisa a evolução feita pelos países em áreas de cooperação econômica e nas próximas etapas produzirá roteiros individuais para o processo de avaliação detalhada por pares.

O processo exige a confirmação dos valores, visões e prioridades da OCDE, como estabelecidas na “Declaração de Visão do 60º Aniversário da OCDE” e na “Declaração do Conselho Ministerial adotada em 2021”, as quais reforçam os objetivos da Convenção de 1960 que institui a OCDE, que os novos membros devem aderir, e estabelecem os valores compartilhados entre Estados-membros, incluindo a preservação da liberdade individual, democracia, Estado de Direito, proteção dos direitos humanos, e das economias de mercado abertas, comerciais, competitivas, sustentáveis e transparentes. Em um futuro protocolo de acessão à OCDE, que não deve ocorrer no atual governo, o Brasil deverá reconhecer que aceita os valores e se compromete para adequar suas instituições e quadro normativo domésticos aos instrumentos da OCDE.

Especialmente para a área digital, existem alguns desafios a serem superados pelo Brasil, que será questionado sobre suas ações de adequação e práticas internas aos instrumentos da OCDE em sub-áreas setoriais envolvendo políticas de internet, privacidade de dados, segurança cibernética, proteção do consumidor online e direitos de propriedade intelectual.

Cada área setorial conta com um conjunto de políticas a serem adotadas pelos membros e potenciais candidatos. Ainda na “Declaração de Visão do 60º Aniversário da OCDE”, a organização deu ênfase aos processos de digitalização, inovação científica e tecnológica. Nesse sentido, membros deverão responder às principais demandas associadas aos processos de digitalização da economia e transformação digital. Observa-se uma preocupação institucional sobre a integração da cadeia produtiva, indústria e negócios aos padrões digitais, além da evolução dos tradicionais padrões laborais, modelos de negócios e finanças na economia digital, hoje em profundos questionamentos no Brasil tanto em suas ações legislativas como orientações da jurisprudência dos tribunais domésticos.

A área de segurança cibernética traduz algumas das principais dificuldades operacionais para o Estado brasileiro, que enfrenta uma série de eventos associados a ataques cibernéticos a bases de dados governamentais e pressões por criminalização de “crackers” atuando na camada profunda da internet (“deep web”) e aplicativos de mensagens como Telegram.

No processo de adesão à OCDE, o Brasil deverá demonstrar que suas instituições respondem adequadamente às ameaças democráticas, violações de privacidade e desinformação online. A agenda digital para 2022, além da guerra informacional associada à barbárie na Ucrânia, já dá sinais de como esses temas estarão em evidência. Há suficientes indícios, como adiantados nos debates da presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), da gravidade das ameaças à segurança digital e higidez de proteção de dados no Brasil. Elas gravitam desde os ataques cibercriminosos às bases de dados e instalações informáticas de órgãos do governo e empresas até ações de desestabilização das eleições e funcionamento da urna eletrônica para o pleito eleitoral de 2022.

No campo de proteção de dados, a OCDE prioriza objetivos sistêmicos e iniciativas que estejam diretamente relacionadas ao livre fluxo transfronteiriço de dados e à confiança digital. São dois setores nos quais o Brasil deverá aperfeiçoar suas práticas se pretende ser admitido na organização. A existência e vigência de uma Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e a atuação de uma Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) no caso brasileiro não são suficientes.

Para padrões da OCDE, o Brasil será chamado a demonstrar a consolidação de desenho institucional em respeito às normas de proteção de dados pessoais, incluindo presença das autoridades de aplicação das leis e jurisprudência consistente dos tribunais nesses setores. São também exigidas a autonomia da ANPD quanto à formulação de políticas, a aplicação de decisões e a observância de princípios de transparência na composição de conselhos políticos relacionados à proteção de dados.

A OCDE analisará as práticas de cooperação digital por parte do Estado brasileiro à luz das diretrizes mais recentes da organização. Membros da OCDE, por sua vez, devem assegurar que padrões adequados de privacidade de dados estejam técnica e suficientemente comprovados, com regras que estabeleçam garantias de segurança e confiança de usuários de internet e consumidores digitais. Esses padrões também contemplam combate à desinformação online e promoção de princípios democráticos e dos direitos humanos associados a negócios digitais. Nesse sentido, determinadas políticas do Estado brasileiro poderão ser avaliadas, como atos normativos do Executivo e Legislativo em vigor, além de projetos de lei em tramitação no Congresso que estejam em desconformidade com os padrões e instrumentos normativos da OCDE. A organização, em suas funções institucionais, poderá formular recomendações específicas ao Estado brasileiro, para orientar suas leis existentes ou aquelas ainda em produção às diretrizes de matéria digital.

São incompatíveis com os padrões da organização, por exemplo, leis e regulamentos que rebaixem direitos e liberdades de empresas de internet, usuários e cidadãos em geral, como, por exemplo, violação de privacidade, proibição de criptografia, monitoramento de tráfego na internet, obrigação de instalação de servidores no território brasileiro.

Esses eventos são considerados obstáculos ao livre fluxo transfronteiriço de dados, privacidade de dados e confiança nas soluções digitais e eles aparecem, em minha opinião, no PL 2630/2021, atualmente em tramitação no Congresso Nacional (Lei brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet).

A iniciativa não foi acompanhada de um trabalho normativo de análise de impacto regulatório a ponto de servir como adequado experimento legislativo “padrão OCDE”. O próprio ordenamento jurídico brasileiro já reconhece o caráter obrigatório de análise de impacto, como previsto no art. 6º da Nova Lei das Agências Reguladoras e no art. 5º da Lei da Liberdade Econômica. No entanto, iniciativas de produção ou de alteração de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos, consumidores ou usuários devem ser antecedidas por um estudo abrangente que determine as condicionantes, efeitos e responsabilidades associadas à jurisdição prescritiva.

Por outro lado, a aplicação de leis vigentes, como Marco Civil da Internet e LGPD, será objeto de escrutínio na perspectiva da implementação de políticas da OCDE em matéria digital. Em políticas de internet, a OCDE acumula instrumentos que orientam os membros em várias frentes, como a formulação de regras aplicáveis à economia digital, conectividade (serviços de acesso à internet, como banda larga) e proteção do consumidor online.

Em geral, a abordagem da OCDE busca equilibrar objetivos de estímulo ao ambiente de negócios na economia digital, como também aqueles de proteção de empresas de médio e pequeno porte (PMEs) e consumidores digitais. Por essa razão, o Brasil deverá — antes de adotar novas leis e regulamentos na área — empreender estudos de impacto regulatório e verificar padrões de conformidade com compromissos a serem firmados na OCDE.

No campo da privacidade online e proteção de dados, existem ainda outras tarefas pendentes, em parte superadas pela entrada em vigor da LGPD e primeiras incursões da ANPD em seu poder regulamentar. No entanto, ficam ainda abertas as janelas para atuação fiscalizatória e sancionatória da autoridade e a demanda reprimida em frentes relevantes no Executivo e Legislativo brasileiros, como para gestão de identidades digitais, estruturas de fomento e regulação de serviços baseados em confiança digital, tokenização de transações comerciais e financeiras — todos fundamentais para inovação no ambiente digital — e proteção dos melhores interesses de menores na internet.

Recentes instrumentos da OCDE caminham nesse sentido, ao associar inovação digital, gerenciamento de identidades digitais e confiança digital aos objetivos normativos de proteção de menores nas transações online, em linha com normas internacionais vigentes. Por fim, no processo de adesão à OCDE, segurança cibernética será tema de agenda regulatória e elaboração de novas políticas públicas no Brasil. O país será questionado sobre as medidas de segurança e enfrentamento adotadas pelo Estado, suas autoridades regulatórias e tribunais para contenção de danos resultantes de ataques cibernéticos e de incidentes de segurança de dados.

O Brasil carece de instrumentos específicos em áreas de infraestrutura crítica para segurança cibernética. Ela se refere, fundamentalmente, a redes associadas aos setores de energia, transportes, comunicações, médico-hospitalar — com frequência expostas a riscos severos de incidentes de segurança, como vazamento de dados pessoais e ataques deliberados por crackers com objetivo de causar colapso do funcionamento de serviços essenciais.

Como observado ao longo deste artigo, o ingresso do Brasil à OCDE não é tardio — dependeu de esforços multilaterais de cooperação ao longo de décadas de fortalecimento de política externa ancorada no diálogo com membros da organização. Esse pleito também induzirá o fortalecimento das estruturas regulatórias, instituições e políticas na área digital, todas preocupadas com valores indissociáveis do comércio, desenvolvimento, democracia e direitos humanos.

Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/politica-digital-ingresso-do-brasil-na-ocde-21032022

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