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Uso equivocado da arbitragem: prejuízo para o Brasil

Uso equivocado da arbitragem: prejuízo para o Brasil

Valor Econômico
4/3/2024

O assoberbamento do Poder Judiciário é um velho problema do Brasil. O crescimento do número de demandas, decorrente da cultura do litígio, faz com que o volume de processos não seja absorvido pelo Estado. Com isso, a duração de uma ação vira ativo no planejamento dos grandes litigantes. O direito de ação de consumidores violados se transforma em negócio para novas empresas.

Nessa conjuntura, a arbitragem tornou-se ferramenta preciosa, dissociada da estrutura estatal. Mais do que independente, o método atende a demanda do ambiente negocial de alta complexidade, com soluções eficientes e céleres.

E não poderia ser diferente, ao adotar a mesma sistemática para arbitragem doméstica e internacional, alinhada com as melhores práticas mundiais, originárias da Lei Modelo Uncitral, a Lei nº 9.307/96 atraiu demandas societárias, contratos de infraestrutura, energia, dentre outros. As características da arbitragem – especialidade, agilidade e confidencialidade – passaram a ser sua maior propaganda.

Tal sucesso culminou na iniciativa de aplicar o instituto da arbitragem como panaceia para todos os males. Nesse sentido, tramitam no Congresso Nacional mais de 150 projetos que pretendem alterar a lei de arbitragem.

Apesar de especialistas envidarem seus maiores esforços para demonstrar ao Poder Legislativo que a vasta maioria dos projetos não passa de um desserviço para o Brasil, recentemente no Marco Legal das Garantias incluiu-se a possibilidade de tabeliães atuarem como árbitros e mediadores.

Ao contrário da capilarização defendida pela iniciativa legal, a reforma promovida pela Lei nº 14.711/2023 revela-se impertinente, por afrontar o caráter privado dos métodos de solução de disputas, mas também por sujeitá-los ao regime público, que é naturalmente incompatível com as diretrizes da justiça particular, confundindo o cidadão comum quanto ao seu uso. E mais: poderá colocar em xeque a credibilidade internacional da arbitragem brasileira.

A permissão dada aos tabeliães para exercerem essas funções certamente induzirá a população a erro, imaginando estar diante de um ente estatal, protegido pelo Judiciário, mas, em verdade, ao celebrar, uma escritura no cartório, dificilmente o signatário entenderá que escolheu uma justiça privada, remunerada, renunciando ao sistema estatal.

A Constituição Federal assegura a todo cidadão brasileiro o direito de acesso à justiça, que, a depender do caso, pode ser gratuita, garantida por magistrados concursados, cujo encargo é a prestação de serviços jurisdicionais, independentemente do valor envolvido, desde os casos de disputa de terras, cobrança de dívidas, despejos, compra e venda, dentre tantos temas que lhes são confiados.

Os árbitros, por sua vez, no exercício de uma atividade privada, quando escolhidos, devem ser remunerados para exercer sua função judicante, não existindo, nessa seara, justiça gratuita ou acesso ao segunda grau de jurisdição.

O cidadão tem o direito de escolher o Judiciário, de poder ter acesso à justiça gratuita, se for necessário. A renúncia a tal direito e a escolha pela arbitragem decorrem do livre consentimento, que caminha pari passu com o livre exercício de sua autonomia da vontade.

Até o momento, não se sabe de que forma serão estabelecidos os emolumentos do tabelião para julgar uma disputa. Na hipótese de o litígio envolver a venda de terras, levar-se-á em conta o valor do imóvel, as horas despendidas pelo notário ou o nível de beligerância das partes? O cidadão conseguirá arcar com esses custos? Estará ele ciente que deverá arcar com essa despesa? As audiências serão conduzidas no cartório? É possível imaginar o número de processos que serão judicializados exatamente para discutir o vício de consentimento na escolha da arbitragem.

Cumpre observar, ainda, sua evidente inconstitucionalidade, uma vez que a arbitragem não é serviço púbico, não devendo o Estado estabelecer tabela de emolumentos, sob pena de violação ao princípio constitucional da livre iniciativa, nos termos do artigo 170 da Constituição.

Se não bastasse a incompatibilidade das atividades de tabeliães, no exercício de suas atribuições, enquanto delegatários de serviço público, com a função de árbitro, a impertinência do novo dispositivo legal também decorre do fato de que as leis de arbitragem e de mediação são suficientemente claras ao estabelecer que toda pessoa capaz, que goze da confiança das partes, pode desempenhar o papel de árbitro ou mediador. Ou seja, não há impedimento para que qualquer pessoa física seja escolhida para exercer tal múnus.

A despeito de todas as benesses da arbitragem, seu emprego não pode ser disseminado a qualquer custo. A arbitragem não é solução para todos os problemas enfrentados pelo uso exacerbado do Poder Judiciário. Deve-se aderir aos institutos com a devida consciência acerca de suas qualidades e características. A relevância e complexidade do caso, bem como a capacidade econômica dos envolvidos no contrato celebrado, devem ser sempre sopesadas quando da sua escolha.

Espera-se que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ao regulamentar a matéria, consiga enxergar quão nociva e prejudicial tal medida pode ser ao cidadão; ao próprio Poder Judiciário, que será instado a decidir sobre inúmeras ações para questionar o vício de consentimento na escolha da arbitragem; e, mais ainda, à própria arbitragem brasileira, que ficará segregada da ordem mundial, com jurisprudência que afastará o investidor estrangeiro da escolha do Brasil como local de boas práticas arbitrais.

Silvia Rodrigues Pachikoski é vice-presidente do Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CAM-CCBC), coordenadora da Comissão de Assuntos Legislativos do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAr) e sócia de LO Baptista Advogados

Disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/coluna/uso-equivocado-da-arbitragem-prejuizo-para-o-brasil.ghtml

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