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Os desafios da arbitragem coletiva

Os desafios da arbitragem coletiva

Migalhas
17/9/2021

Cabe às instituições arbitrais, ao disciplinarem a arbitragem coletiva em seus regulamentos, estabelecer a forma de indicação de árbitro, se por consenso entre as partes ou se por indicação pela própria instituição.

Por — Silvia Rodrigues Pachikoski

A arbitragem coletiva – embora já desenvolvida em outros ordenamentos1 – é nova na prática brasileira; porém, já se revelou um instrumento relevante de acesso à justiça2.

No Brasil, as arbitragens coletivas se tornaram um dos meios preferenciais para solucionar disputas de companhias de capital aberto (art. 109, § 3º, da lei 6.404/76)3. Há diversos casos de conhecimento público, como aqueles que envolveram a companhia Vale, a Petrobras e o IRB. Entretanto, o instrumento é apto para dirimir não apenas conflitos relacionados ao mercado de capitais, mas quaisquer litígios sobre direitos disponíveis que se enquadrem no art. 1º da lei  9.307/964.

Logo, como oportunamente mencionado pelo desembargador Cesar Ciampolini, na Apelação Cível 1031861-80.2020.8.26.0100, a arbitragem coletiva, como instrumento de pacificação social, merece ser objeto de reflexão5.

A referida análise a ser feita sobre o instituto da arbitragem não deve, porém, limitar-se a questões dogmáticas, porquanto os maiores desafios são procedimentais. Assim, as reflexões devem abranger também os problemas enfrentados pelas instituições arbitrais para viabilizar a implementação da arbitragem coletiva. Deste modo, pretende-se aqui – sem a pretensão de esgotar o assunto – suscitar algumas questões que parecem ser os principais desafios das instituições arbitrais.

Sempre que se aborda a arbitragem coletiva, a primeira questão que se põe diz respeito à confidencialidade. Trata-se, provavelmente, de um dos temas mais discutido nos últimos tempos.

A confidencialidade passou a sofrer maiores questionamentos com o aumento do número de arbitragens envolvendo companhias de capital aberto. Com isso, criou-se uma relação colidente entre a confidencialidade das arbitragens societárias e a necessária transparência do mercado de capitais6.

Contudo, embora seja uma questão relevante, os desafios a serem enfrentados pelas instituições arbitrais não se restringem a “se”, “como” e “quando” divulgar informações sobre os procedimentos. Há outras questões menos abordadas que são igualmente instigantes, como, por exemplo, a conexão de procedimentos a nomeação dos árbitros.

A consolidação de procedimentos foi discutida recentemente na Apelação Cível mencionada nas linhas acima. O cerne do debate era a ilegalidade ou o equívoco da decisão administrativa, proferida pela Presidência da CAM-B3, que indeferiu o pedido de reunião de procedimentos arbitrais supostamente conexos.

A 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu que a decisão deveria ser mantida, pois não caberia a intervenção do Poder Judiciário, considerando que a decisão foi proferida nos exatos termos do regulamento de arbitragem. Com isso, em um só tempo, prestigiou a decisão tomada pela instituição arbitral e a autonomia das partes que a elegeram e aderiram ao respectivo regulamento.

Em tais situações, embora as partes devessem respeitar a decisão sobre a reunião dos procedimentos, é necessário que as instituições arbitrais brasileiras criem regras de conexão aplicáveis às arbitragens coletivas, como, por exemplo, as regras do Regulamento da instituição arbitral alemã Deutsche Institutionfür Schiedsgerichtsbarkeit e. V. (“DIS”).7

Por sua vez, a nomeação de árbitros pode parecer uma questão menos complexa. Porém, a dificuldade não está na simples indicação pelas partes, pois, estando os titulares do direito representados por uma associação, caberá a esta a indicação do árbitro, devendo apenas respeitar eventuais regras internas de tomadas de decisão.

O desafio está em identificar eventuais conflitos, considerando o número elevado de pessoas (direta e indiretamente) envolvidas e interessadas no procedimento. O problema pode se agravar quando houver a participação de investidores institucionais em companhias de capital aberto.

Tal circunstância tende a trazer maiores dificuldades para que os árbitros exerçam o seu dever de revelação, cuja exigência de cumprimento é máxima (art. 14, § 1º da lei 9.307/96)89. Porém, além de ter que ser interpretado cum grano salis, afastando-se situações menores (e.g., árbitro é acionista da companhia aberta que litiga), como adverte o Professor José Rogério Cruz e Tucci10, a responsabilidade por apurar eventuais fatos geradores de conflito deve ser compartilhada com as partes. Estas devem ser mais proativas e diligentes na investigação dos conflitos, desonerando parcialmente os potenciais árbitros.

Em relação à questão, cabe às instituições arbitrais, ao disciplinarem a arbitragem coletiva em seus regulamentos, estabelecer a forma de indicação de árbitro, se por consenso entre as partes ou se por indicação pela própria instituição. Neste sentido, destaca-se a importância de observar a autonomia da vontade das partes que, por óbvio, devem, sempre, contribuir para que os árbitros indicados, quer seja por consenso, quer seja pela instituição, possam prestar seu compromisso com a imparcialidade da melhor forma possível, o que dependa do nível de detalhe das informações prestadas pelas partes.

Conclui-se, assim, que – embora o instituto tenha grande potencial de ser um relevante instrumento de acesso à justiça – os desafios da arbitragem coletiva não são pouco ou simples. As instituições arbitrais cumprem papel relevante para a sua viabilização de forma segura e consistente; porém, cabe a todos os envolvidos contribuir para a estruturação de um sistema de arbitragem coletiva confiável que tutele adequadamente os interesses de titulares de direitos individuais homogêneos, sem maiores percalços procedimentais.

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1 ALMEIDA PRADO, Maurício. SCHILLING, Pedro. Classarbitration no direito comparado. In: MONTEIRO, André Luis. PEREIRA, Guilherme Setoguti J. BENEDUZI, Renato. Arbitragem coletiva societária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, pp. 420-427.
2 TUCCI, José Rogério Cruz e. Considerações para a plena admissibilidade da tutela arbitral coletiva. Acesso em: 09/08/2021.
3 MUNIZ, JOAQUIM Paiva. SILVEIRA, Bruna Alcino Marcondes. Arbitragens coletivas e interpretação estrita das regras de independência e imparcialidade para nomeação dos árbitrosIn: MONTEIRO, André Luis. PEREIRA, Guilherme Setoguti J. BENEDUZI, Renato. Arbitragem coletiva societária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 232.
4 Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.
§ 1o A administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis.
5 TJSP; Apelação Cível 1031861-80.2020.8.26.0100; Relator: Cesar Ciampolini; 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial;Data do Julgamento: 30/06/2021; Data de Registro: 01/07/202.
6 BERNINI, Marcela Tarré. Confidencialidade na arbitral e classarbitration. In: MONTEIRO, André Luis. PEREIRA, Guilherme Setoguti J. BENEDUZI, Renato. Arbitragem coletiva societária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 316.
7″9.1 Where multiple arbitral proceedings with a subject-matter have been initiated, requiring a single decision binding the parties and the Concerned Others, sections 9.2 – 9.4 apply.
9.2 The arbitral proceeding that has been initiated first (leading arbitral proceeding) precludes the conduct of an arbitral proceeding initiated at a later point in time (subsequent arbitral proceeding). A subsequent arbitral proceeding is inadmissible.” Disponível aqui. Acessado em 23.08.2021.
8  Estão impedidos de funcionar como árbitros as pessoas que tenham, com as partes ou com o litígio que lhes for submetido, algumas das relações que caracterizam os casos de impedimento ou suspeição de juízes, aplicando-se-lhes, no que couber, os mesmos deveres e responsabilidades, conforme previsto no Código de Processo Civil.
§ 1º As pessoas indicadas para funcionar como árbitro têm o dever de revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência.
9 TJSP, Apelação Cível 1056400-47.2019.8.26.0100; Relator: Fortes Barbosa; 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 25/08/2020; Data de Registro: 25/08/2020.
10 TUCCI, José Rogério Cruz e. Dever de revelação na arbitragem coletiva. MONTEIRO, André Luis. PEREIRA, Guilherme Setoguti J. BENEDUZI, Renato. Arbitragem coletiva societária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p. 259.

Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/351740/os-desafios-da-arbitragem-coletiva

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