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Lei passa a autorizar a diferenciação de preços

Lei passa a autorizar a diferenciação de preços

JOTA
19.07.2017
De Heitor Tales de Lima Fávaro – Advogado da área Direito do Consumidor no L.O. Baptista Advogados

Em 26 de junho de 2017 foi sancionada a Lei 13.455, que dispõe sobre a diferenciação de preços de bens e serviços oferecidos ao público em função do prazo. A Lei confirma uma autorização que vinha sendo aplicada desde dezembro do ano de 2016, por força de Medida Provisória, mas contestada por entidades voltadas à proteção dos interesses dos consumidores.

Apesar de ter como um de seus objetivos aumentar a segurança jurídica, a Lei pode ter reacendido uma discussão que estava próxima de ser pacificada pelo Judiciário.

Quando da promulgação do Código de Defesa do Consumidor, em 1990, o cenário político e econômico era outro, pois totalmente distinto do atual. O Código de Defesa do Consumidor, com suas disposições protetivas e demais preceitos considerados bastante modernos para a época teve aplicação bastante tímida nos seus primeiros anos de vigência.

Ao longo dos anos, as disposições do Código tomaram forma. Os princípios pregados pela nova legislação passaram a ser melhor compreendidos por juristas e pelos próprios consumidores, influenciando um novo conjunto de normas, bem como a criação e formação de uma ampla rede de proteção dos interesses dos consumidores, com participação ativa de toda a sorte de entidades. Cita-se, apenas como exemplo: os PROCON’s, a Delegacia do Consumidor (DECON), o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC), o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC) e a Associação Brasileira de Defesa do Consumidor (PROTESTE).

Com o passar dos anos, o protagonismo dessas e outras entidades se intensificou, tendo a defesa dos direitos do consumidor sido elevada à política de Estado, marcada inclusive pela criação de um Plano Nacional de Consumo e Cidadania (PLANDEC), no ano de 2013.

Contudo, em determinados momentos ao longo dessa trajetória de evolução da proteção dos interesses dos consumidores, algumas conquistas sempre tiveram uma conotação duvidosa e sabor pouco palatável. A legitimidade ou não de o fornecedor aplicar preços diferenciados para produtos ou serviços, de acordo com a modalidade de pagamento, é um desses casos de difícil digestão, pois quanto mais analisados os prós e contras de eventual proibição, mais dúvidas pairam sobre a questão.

Face à difusão de novos e diferentes meios de pagamento e, em especial, com a popularização do uso de cartões de crédito, alguns estabelecimentos comerciais passaram a praticar preços diferentes de acordo com os encargos atribuídos à cada transação, seja em função do meio de pagamento utilizado pelo cliente, seja em razão da diluição do prazo para pagamento.

A questão foi logo notada pelas entidades de proteção dos interesses dos consumidores, que vislumbraram na referida prática a ocorrência de um repasse indevido de custos ao consumidor, a configurar uma prática abusiva, teoria esta que, segundo as entidades, encontraria amparo nos incisos V e X do artigo 39 do Código de Defesa do Consumidor, segundo o qual “É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: (…) V – exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva; (…) X – elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços”.

Da teoria para a prática, essas mesmas entidades passaram a rechaçar a diferenciação de preços e, em situações específicas, fornecedores foram autuados na via administrativa e/ou acionados em juízo para responder pelas pretensas práticas abusivas, muitas vezes sofrendo penalidades.

O debate no Judiciário logo chegou ao Superior Tribunal de Justiça, que nas duas oportunidades que se pronunciou sobre o assunto, julgou a conduta como sendo lesiva aos interesses dos consumidores.

De acordo com a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, em decisão proferida em 16/03/2010 e de relatoria do Ministro Massami Uyeda (Recurso Especial 1133410 /RS), em caso que se debruçava sobre a cobrança de preços diferenciados na venda de combustível em dinheiro, cheque e cartão de crédito, entendeu-se que “ao efetuar o pagamento por meio de cartão de crédito”, o consumidor “exonera-se, de imediato, de qualquer obrigação ou vinculação perante o fornecedor, que deverá conferir àquele plena quitação. Está-se, portanto, diante de uma forma de pagamento à vista e, ainda, pro soluto”.

Seguindo o raciocínio acima, o Superior Tribunal entendeu que “o custo pela disponibilização de pagamento por meio do cartão de crédito é inerente à própria atividade econômica desenvolvida pelo empresário, destinada à obtenção de lucro, em nada referindo-se ao preço de venda do produto final”, de modo que “imputar mais este custo ao consumidor equivaleria a atribuir a este a divisão de gastos advindos do próprio risco do negócio (de responsabilidade exclusiva do empresário), o que, além de refugir da razoabilidade, destoa dos ditames legais, em especial do sistema protecionista do consumidor”.

Com base nesses argumentos, concluiu-se  naquela oportunidade, que a atribuição do custo pela disponibilização de pagamento por meio de cartão de crédito, por exemplo, importaria numa dupla oneração do consumidor, revelando-se abusiva.

Alguns anos mais tarde, em 2015, foi a vez da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça se pronunciar sobre o tema. Na oportunidade, em decisão de relatoria do Ministro Humberto Martins (Recurso Especial 1479039 / MG), a diferenciação entre o pagamento em dinheiro, cheque ou cartão de crédito foi novamente reprovada e caracterizada como “prática abusiva no mercado de consumo, nociva ao equilíbrio contratual”.

O tema parecia caminhar rumo à sua pacificação e, no entanto, em dezembro de 2016, foi editada a Medida Provisória nº 764, autorizando a diferenciação de preços de bens e serviços oferecidos ao público, em função do prazo ou do instrumento de pagamento utilizado.

Na exposição de motivos para apreciação da proposta de edição da referida Medida Provisória, em sentido oposto às conclusões firmadas pelo Judiciário, a diferenciação de preços foi alçada como um importante mecanismo para a melhor aferição do valor econômico de produtos e serviços, além de serem destacados uma série de benefícios aos consumidores, talvez o mais relevante deles: o de “minimizar a existência de subsídio cruzado dos consumidores que não utilizam cartão (majoritariamente população de menor renda) para os consumidores que utilizam esse instrumento de pagamento (majoritariamente população de maior renda)”

Em outras palavras: segundo a exposição de motivos da Medida Provisória, nivelar os preços para as diferentes modalidades de pagamento teria implicado a transferência dos custos dos usuários de cartões aos consumidores em geral, afetando especialmente os consumidores de baixa renda, usuários não habituais de cartões e, no caso do Brasil, a grande maioria da população.

A exposição de motivos da Medida Provisória também trouxe à tona outro importante elemento, ao consignar que a medida teria objetivo de evitar “controvérsias regulatórias e judiciais decorrentes da ausência de marco legal sobre a matéria”. Ou seja, admitiu-se que a regulamentação da matéria, senão inexistente, era no mínimo obscura.

Discordando das motivações acima, várias entidades de proteção aos consumidores não tardaram a se pronunciar contrariamente à Medida Provisória, com alguns argumentos bastante controversos, dentre eles: que a diferenciação de preços seria contra a lei; que feriria o direito à informação do consumidor e reduziria o seu poder de compra; que iria na contramão do mundo contemporâneo; que dificultaria a comparação de preços limitando a liberdade de escolha do consumidor e, mesmo, que incentivaria a violência urbana ao se privilegiar o uso de dinheiro em detrimento de outros meios de pagamento, partindo da premissa que o porte de dinheiro seria perigoso.

Mais recentemente, a aludida Medida Provisória foi convertida na “Lei 13.455, de 26 de junho de 2017, que autoriza a “diferenciação de preços de bens e serviços oferecidos ao público em função do prazo ou do instrumento de pagamento utilizado”, bastando que o fornecedor tome os necessários cuidados para que o consumidor seja adequadamente conscientizado sobre as peculiaridades na forma optada para pagamento.

Assim, se por um lado a conversão em Lei de uma Medida Provisória que autoriza uma prática que vinha sendo considerada abusiva em sua origem possa causar intriga, a pergunta que parece ser mais relevante no momento, é outra: a simples diferenciação de preços poderia ter sido – como vinha sendo – considerada uma prática abusiva?

Neste aspecto, a exposição de motivos da Medida Provisória, com referência a estudos do Banco Central do Brasil, Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda e a então Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, sugere que a proibição vinha na realidade servindo ao aumento da desigualdade social e, notadamente, prejudicando um maior número de consumidores, conclusão que se revela estarrecedora, pois coloca em xeque todas as autuações anteriores e que de qualquer modo apenaram fornecedores que se utilizaram da prática no período anterior à promulgação da nova Lei.

Da mesma forma, a admissão pelo próprio Estado de que a legislação anterior não seria suficiente clara, serve de agente cítrico à discussão, pois, no mínimo, coloca em pauta a higidez da atuação das entidades – especialmente àquelas vinculadas à atuação estatal – que agiram sob a aparente tutela dos interesses dos consumidores, quando na realidade estariam prejudicando-os.

Ao seu turno, os fornecedores afetados por autuações administrativas e condenações judiciais também restariam prejudicados.

Tais razões, como se pode vislumbrar, são mais do que suficientes para reacender a discussão nas várias esferas e aspectos acerca do tema, incluindo o questionamento da Lei em si, ante a análise de sua adequação em relação ao ordenamento jurídico brasileiro, o que se supõe que ocorrerá em um futuro próximo.

Por ora, a autorização para diferenciação de preços de bens e serviços ao público, em função do prazo ou do instrumento de pagamento, seja dinheiro, cartão de crédito, cartão de débito, boleto etc possui proteção legal, muito distante daquele cenário de abusividade pregado pelas entidades de defesa do consumidor, cujo raciocínio vinha ganhando espaço e adeptos nos Tribunais brasileiros.

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