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Quando recuperar uma empresa estatal valerá o esforço: a indústria de semicondutores e o Brasil

Quando recuperar uma empresa estatal valerá o esforço: a indústria de semicondutores e o Brasil

15/1/2024

País poderia se tornar ‘hub’ regional para desenvolvimento, produção e exportação de componentes e equipamentos para produtos de alta tecnologia

Por – Fabrício Bertini Pasquot Polido

Em novembro de 2023, o presidente Lula da Silva assinou o Decreto n.º 11.768, para reverter o processo de dissolução de empresa pública dedicada à fabricação de semicondutores no Brasil, o Centro Nacional de Tecnologia Eletrônica Avançada S.A. (Ceitec), e que havia sido iniciado sob o governo Jair Bolsonaro. O governo atual vê a retomada da Ceitec como uma oportunidade para impulsionar o setor de chips e a competitividade do Brasil no mercado global. Semicondutores são insumos necessários para a indústria de alta tecnologia, informática e equipamentos digitais.

Nesses segmentos, encontram-se componentes, circuitos integrados e microprocessadores de várias gerações que alimentam a base dos processos de digitalização da economia, automatização, transporte inteligente, processamento de dados e comunicação digital. Não se trata de algo irrelevante por parte do Estado brasileiro. Ao contrário, reflete o resgate da Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (PITCE), instituída ainda no primeiro mandato de Lula, visando a fortalecer o desenvolvimento industrial em tecnologias avançadas. A medida do governo ocorre em um momento delicado na economia global, de choques a afetar cadeias de suprimentos (em marcha desde a pandemia) e da crise deflagrada de fornecimento de produtos semicondutores em escala global. Nesse campo, as disputas geopolíticas entre EUA e China na corrida tecnológica digital não deixam de trazer obstáculos para qualquer espaço de desenvolvimento ou retomada de setores diversificados em economias dos países emergentes, especialmente nas indústrias de tecnologias avançadas, computação e automação.

Ao longo dos anos 2000, o Poder Executivo buscava apoiar o setor da indústria de semicondutores em meio a ações associadas ao PITCE, a saber, o Programa Nacional de Microeletrônica (2002), o Programa CI Brasil (2005), o Padis (2007), as iniciativas do BNDES até a criação da Ceitec em 2008, empresa estatal vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Para alinhar-se às tendências de proteção dos direitos de propriedade intelectual, especialmente padrões estabelecidos pelo Acordo Trips da Organização Mundial do Comércio, foi promulgada a Lei n.º 11.484/2007, que dispõe sobre a proteção da topografia de circuitos integrados, aplicada a semicondutores, microprocessadores e circuitos de displays.

Em 2012, a Ceitec passou a operar em Porto Alegre e ampliou a lista de produtos complexos, investindo em entregas de médio e longo prazo, que foram injustamente alvos das campanhas deletérias promovidas contra Ciência, Tecnologia e Inovação nos anos Bolsonaro. Nada de surpreendente, pois foi durante aquele governo que as atividades da Ceitec cobriram demandas nos setores público e privado, como chips de carteiras, passaportes e produtos eletrônicos. Em 2021, a Ceitec havia fornecido mais de 162 milhões de chips para o setor privado, marcando presença na América Latina.

Em 2019, o governo Bolsonaro incluiu a Ceitec na lista de ativos a serem desestatizados, qualificando a estatal para o Programa de Parceria de Investimentos, a partir do qual seriam avaliadas parcerias entre Ceitec e iniciativa privada. Em dezembro de 2020, o Ministério da Economia decidiu pela dissolução societária da Ceitec e pela venda de seus ativos para a iniciativa privada, justificando que a empresa seria “deficitária”. Porém, em setembro de 2021, o Tribunal de Contas da União (TCU) determinou a suspensão das medidas e requereu explicações ao Ministério da Economia.

Em sua decisão, o TCU reconheceu o pioneirismo da Ceitec e a falta de justificativas técnicas robustas para embasar a dissolução societária, além de detectar irregularidades nos procedimentos de avaliação que levaram à decisão. Em fevereiro de 2023, sob novo governo, foi criado um grupo de trabalho interministerial para estudar a reversão do processo de dissolução da Ceitec e a retomada de decisões de gestão da estatal, que estavam bloqueadas pela condição jurídica de empresa em liquidação. Publicado em abril de 2023, o Decreto n.º 11.478 excluiu a Ceitec do Programa Nacional de Desestatização.

Esse retrospecto permite especular se o Brasil teria espaço para avançar no desenvolvimento do setor de chips e na descentralização produtiva global que pudessem fazer superar a capacidade da Ceitec de oferta de insumos ao mercado interno. Sim. Uma alternativa seria apostar em descentralização da produção regional com a presença da Ceitec ou oferta de insumos ao mercado doméstico. A reversão da dissolução da estatal no ciclo pós-pandêmico no Brasil já demonstrará a importância de valorização dos semicondutores no contexto de políticas de investimentos para o setor de componentes avançados e estratégicos, como microprocessadores e eletroeletrônicos.

É possível que o papel da Ceitec inclua o resgate e aquisição de conhecimentos científicos e tecnológicos atualmente concentrados em países como Taiwan, Coreia do Sul, Japão, China e EUA. O setor de semicondutores é de expressiva transformação tecnológica, impulsionada pelo amplo uso de microprocessadores de distintas capacidades e velocidades nos dispositivos eletrônicos e digitais, presentes em quase todas as atividades da vida humana e dos ciclos de inteligência artificial (IA). A reversão da desestatização pode mitigar os riscos de perdas relativas às instalações, máquinas e equipamentos já mantidos na planta em Porto Alegre, além de permitir o reingresso da empresa no mercado e a retomada de negócios em menor prazo.

Acontece que a consolidação da Ceitec enfrenta desafios após o desmantelamento da estatal e ofensiva de desinformação durante o governo Bolsonaro. O desmonte ao longo dos anos resultou na perda de mais de 95% do pessoal qualificado da estatal. A empresa requer nova abordagem, como foco em pesquisa e desenvolvimento de tecnologias em microeletrônica, nanotecnologia, biotecnologia, robótica, IA e internet das coisas (IoT), para buscar diversificar sua atuação nos mercados de tecnologias digitais. A Ceitec deverá estabelecer novas parcerias com universidades, centros de pesquisa, empresas no Brasil e exterior, além de envolvimento com organizações internacionais para ampliar seu esperado pioneirismo na América Latina.

Já se especula se o governo brasileiro, pressionado corretamente por setores de economia, é capaz de estimular setores de componentes eletrônicos que hoje atendem à base das indústrias automotiva, de transportes e de maquinário partindo de uma nova política para atrair fabricantes de semicondutores para o Brasil.

Em 2022, Brasil e Coreia do Sul firmaram memorando de entendimento para estudos de viabilidade da instalação de uma unidade de semicondutores e processadores no território nacional. Independentemente da sucessão de governos e suas orientações políticas, trata-se de uma escolha de política de Estado para prospecção de instalação de um parque industrial de alta geração no Brasil, capaz de abastecer a indústria local e demandas da América Latina, Europa e África.

As escolhas recaem na deflagrada “guerra dos chips”, com intensa competição existente na cartografia dos processadores de alta geração. No caso da China e EUA, existem outros fatores geopolíticos que fazem acirrar a corrida tecnológica e as pressões exercidas sobre Taiwan. Os semicondutores são o quarto produto mais comercializado em escala global. Em 2020, a pandemia fez eclodir a rota de escassez da produção de chips ao redor do mundo, evidenciando os riscos de dependência tecnológica de países fornecedores e de insumo central para a economia digital.

O aumento expressivo da demanda provocada pelo uso intensivo de computadores e dispositivos inteligentes durante a pandemia revelou quão estratégicos e escassos os semicondutores são. E mais, provou o quanto os microprocessadores são relacionados à soberania dos Estados. Iniciativas de diferentes países indicaram medidas de redução da dependência das cadeias de suprimento de chips. Em fevereiro de 2022, a União Europeia aportou US$ 47 bilhões em sua indústria de semicondutores, com intuito de elevar sua participação na produção mundial de chips.

Em março de 2023, a Coreia do Sul aprovou o K-Chips Act para alavancar sua indústria de circuitos integrados oferecendo isenções às empresas para estimular investimentos no setor, ao lado de outros centrais, como de displays, baterias secundárias e robótica. Nos EUA, ainda em 2022, o presidente Joe Biden sancionou o Chips & Science Act, que prevê créditos tributários às empresas que investirem em equipamentos de produção de circuitos integrados ou construção de novas instalações. A lei ainda prevê que beneficiários sejam impedidos de fazer novos investimentos na produção de semicondutores de alta tecnologia em países concorrentes pelos próximos dez anos.

Para intensificar a produção local de semicondutores, em caso de descumprimento da lei, os beneficiários serão obrigados a restituir os recursos e créditos fiscais recebidos. Acredita-se que essa medida possa reduzir a dependência de semicondutores de polos asiáticos e recuperar a capacidade do mercado estadunidense na produção de chips de alta tecnologia.

O Brasil poderia então se beneficiar dessa corrida? Sim. Segundo dados da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica, o déficit comercial do setor de componentes eletrônicos foi de US$ 38,6 bilhões em 2022, sendo da ordem de US$ 11 bilhões o consumo de semicondutores no Brasil. Apenas 8% da demanda foi atendida pela indústria nacional, com importação de mais de 90% do total de chips em 2021.

Em um quadro de acirramento da corrida tecnológica entre EUA e China, conflitos internacionais, guerras e a emergência climática descontrolada, existem espaços para mudanças na cadeia global de semicondutores, além de oportunidades para iniciativas regionais de pesquisa e desenvolvimento (P&D) e fabricação local dos insumos. Desse modo, o Brasil poderia ser favorecido, tornando-se um hub regional para desenvolvimento, produção e exportação de componentes e equipamentos importantes para desenvolvimento de produtos de alta tecnologia.

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