03/10/2024
Como um dos direitos fundamentais, o artigo 196 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 preconiza que a saúde é direito de todos e dever do Estado, a quem cabe a implementação de políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação, inclusive no que diz respeito ao acesso a medicamentos.
Nesse contexto, a Lei n° 8.080, de 19 de setembro de 1990 (Lei do SUS) foi publicada para tratar dos meios a serem adotados para garantia da promoção, proteção e recuperação da saúde, instituindo o Sistema Único de Saúde – SUS para o cumprimento de tais finalidades.
Alguns anos depois, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (“Anvisa”) foi criada, por meio da Lei n° 9.782, de 26 de janeiro de 1999, para garantir parâmetros de segurança, qualidade e eficácia em relação aos produtos a serem fornecidos, bem como no tocante às empresas envolvidas na cadeia de produção, abrangendo também parâmetros aplicáveis aos medicamentos.
Para dispor sobre a assistência terapêutica e tratar da incorporação de tecnologias em saúde (que abrange medicamentos, produtos e procedimentos) no âmbito do SUS, a Lei n° 12.401, de 28 de abril de 2011 criou a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (“CONITEC”), cujas competências estão dispostas no Decreto nº 7.646/2011, dentre as quais está o dever de assessorar o Ministério da Saúde nas referidas incorporações.
Convém mencionar que, se por um lado há o paciente com suas complexas necessidades e seu direito de acesso, por outro lado há o Estado (Nação) com a responsabilidade de organizar a divisão de deveres, inclusive econômicos, entre os entes federativos, haja vista a limitação de recursos financeiros.
Por essa razão, nos processos de incorporação de novas tecnologias em saúde, a CONITEC promove uma análise que considera, sobretudo, o custo-efetividade das tecnologias em saúde a serem incorporadas pelo SUS, o que resulta, muitas vezes, em recomendações desfavoráveis à incorporação de medicamentos, que podem ser seguidas pelo Ministério da Saúde, mesmo após a interposição de recurso administrativo pelo interessado.
A manutenção da negativa na incorporação, para que determinado medicamento seja disponibilizado aos pacientes via SUS, tem gerado milhares de demandas de acesso pela via judicial, com inúmeras consequências à administração pública (orçamento do Ministério da Saúde), aos milhares de pacientes, bem como à indústria farmacêutica, que através de investimentos milionários, vêm revolucionando os tratamentos disponíveis.
Importante relembrar que o registro do medicamento na Anvisa é condição obrigatória para que o pedido de incorporação seja avaliado.
Considerando o nível de judicialização hoje vigente, dois Recursos Extraordinários RE nº 1.366.243” e RE nº 566.471 foram analisados pelo Supremo Tribunal Federal (“STF”) em setembro de 2024, sendo importante destacar que o entendimento fixado nesses REs deverá ser aplicado a todas as ações judiciais (em curso ou futuras) tratando do acesso.
No que diz respeito ao RE nº 1.366.243, ele é resultante de discussões iniciadas em um processo distribuído na Comarca de Xaxim, Santa Catarina, em 15 de outubro de 2019, em que um paciente propôs uma Ação Cominatória contra o Estado de Santa Catarina buscando ter acesso a medicamentos para o tratamento de Epilepsia Refratária, cujo acesso foi negado administrativamente por não constarem de lista do SUS. Após discussões em primeira e segunda instâncias, inclusive sobre questões de competência para definir qual ente federativo deveria figurar no polo passivo da ação, o processo chegou ao STF por meio do RE nº 1.366.243.
Já, com relação ao RE nº 566.471, ele é desdobramento de um processo distribuído na Comarca de Natal, Rio Grande do Norte, em 14 de dezembro de 2006, por meio do qual uma paciente propôs uma Ação de Obrigação de Fazer contra o Estado do Rio Grande do Norte, a fim de ter acesso a medicamento para o tratamento de miocardiopatia isquêmica e hipertensão arterial pulmonar. Após discussões em primeira e segunda instâncias, o processo chegou ao STF por meio do RE nº 566.471.
A presente nota abordará pontos relevantes dos REs, bem como definições trazidas pelo STF.
RE nº 1.366.243
Buscava fixar tese no chamado tema 1.234 de repercussão geral, que discute a legitimidade passiva da União e competência da Justiça Federal nas demandas que versem sobre fornecimento de medicamentos registrados na Anvisa, mas não incorporados no SUS, discussão que evoluiu e teve a criação de uma Comissão Especial, composta pela União, Estados, Municípios e entidades, resultando na criação de três acordos avaliados pelo STF que, por unanimidade, decidiu:
- Competência e custeio em demandas relativas a medicamentos não incorporados pelo SUS, mas registrados na Anvisa:
- Quando o valor anual do tratamento for igual ou superior a 210 salários mínimos (salário mínimo definido em R$ 1.412,00 em 2024), devem tramitar na Justiça Federal e serão custeados integralmente pela União.
- Quando o custeio anual ficar entre 7 e 210 salários mínimos, os casos devem ser levados à Justiça Estadual e eventuais condenações dos Estados e dos Munícipios serão custeados em 65% pela União e em 35% pelo ente federativo condenado (Estado ou Município), ressalvados os casos de medicamentos oncológicos em que o percentual de custeio pela União sobe para 80%.
- Obrigação do Poder Judiciário: sob pena de nulidade da decisão judicial, o Poder Judiciário fica obrigado a analisar a razão da não incorporação do medicamento, avaliando o ato que negou a incorporação ou omissão por parte da CONITEC. Caso exista ato da CONITEC decidindo pela não incorporação, o Poder Judiciário deve verificar se essa decisão está em conformidade com os ditames da Constituição Federal, promovendo uma análise formal e não de mérito do ato (controle de legalidade).
- Criação de Plataforma: os entes federativos deverão implementar, conjuntamente, uma plataforma nacional que conterá informações acerca de demandas administrativas e judiciais de acesso a fármacos, que poderá ser acessada pela população, com informações mínimas sobre o assunto, inclusive indicando quem será o responsável pelo custeio e fornecimento entre os entes federativos.
Importante destacar que, em 23 de setembro de 2024, a Defensoria Pública da União opôs Embargos de Declaração em face ao Acórdão do STF proferido no RE nº 1.366.243, mesmo após a publicação da súmula vinculante nº 60, de 20/09/2024, que sintetiza a posição do STF ora destacada.
Nos referidos Embargos, a Defensoria Pública pede que o STF complemente sua decisão, a fim de afastar a possibilidade de atuação da Defensoria Pública Estadual na Justiça Federal, já que o Acórdão do STF proferido no RE nº 1.366.243 exige que o Poder Público se comprometa a adotar os esforços necessários para proteger o direito de pacientes, inclusive com cooperações entre os órgãos estaduais e federais.
RE nº 566.471
Buscava fixar tese no chamado tema 6 de repercussão geral, que discutia o dever do Estado de fornecer medicamento de alto custo a portador de doença grave que não possui condições financeiras para comprá-lo, mas a discussão evoluiu para avaliar se o Estado tem o dever de fornecer medicamento que, apesar de regularizado na Anvisa, não está incorporado pelo SUS, tendo o STF decidido, por maioria, que:
- Regra geral: em regra, a ausência de incorporação do medicamento pelo SUS, impede o fornecimento do fármaco solicitado pela via judicial, independentemente do custo ser alto ou não.
- Exceção: excepcionalmente, o medicamento pode ser fornecido, desde que todos os requisitos abaixo listados sejam atendidos pelo paciente (autor da ação):
- Negativa de fornecimento pela via administrativa;
- Falta de pedido de incorporação ou demora em sua análise, ou, ainda, ilegalidade do ato de não incorporação;
- Impossibilidade de substituições por outro medicamento já ofertado pelo SUS;
- Comprovação de eficácia, efetividade e segurança do medicamento, com alto nível de evidência apresentado por ensaios clínicos randomizados e revisão sistemática ou meta-análise;
- Demonstração de imprescindibilidade clínica do tratamento; e
- Incapacidade financeira de arcar com o medicamento.
O STF determinou, ainda, que é dever do Poder Judiciário não respaldar sua decisão unicamente na prescrição, relatório ou laudo médico apresentado pelo paciente na ação judicial. Convém mencionar que a súmula vinculante nº 61, sintetizando o entendimento firmado pelo STF no RE nº 566.471, foi publicada no DOU de 03 de outubro de 2024.
Projeto de Lei Complementar nº 149, de 2024
Em 19 de setembro de 2024, três dias após a decisão do STF ter sido disponibilizada no tocante ao RE nº 1.366.243, e com um posicionamento praticamente definido no RE nº 566.471, em que estava pendente apenas o voto do Ministro Nunes Marques, o Senador Romário (PL/RJ) apresentou o Projeto de Lei Complementar n° 149, de 2024,cujos pontos relevantes trazemos abaixo.
O Projeto de Lei Complementar n° 149, de 2024, visa estabelecer a responsabilidade solidária dos Entes Federativos para o fornecimento de medicamentos, prevendo, inclusive, critérios mais simples para o fornecimento de medicamentos não incorporados no SUS ou até mesmo não registrados na Anvisa, atualmente aguardando despacho para seguir com a tramitação no Senado Federal. Veja mais:
- Medicamento registrado na Anvisa, mas não incorporado ao SUS: poderá ser fornecido se cumpridos os requisitos de: (i) comprovação da necessidade do medicamento, por meio de laudo médico, que deve demonstrar a ineficácia das opções existentes no SUS; (ii) demonstração da incapacidade financeira do paciente de arcar com o custo do medicamento, avaliando exclusivamente a capacidade financeira do paciente; e (iii) o registro do medicamento na Anvisa, em conformidade com as opções de uso aprovadas pela Agência.
- Medicamento sem registro na Anvisa: excepcionalmente, poderá ser fornecido pela via judicial caso haja mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido de registro, desde que (i) exista o pedido de registro do medicamento no Brasil, salvo em caso de medicamentos para doenças raras e ultrarraras por conta de urgência do caso; e (ii) exista o registro do medicamento em renomadas autoridades regulatórias estrangeiras.
Além disso, o projeto visa estabelecer que o Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais e que quaisquer ações que demandem o fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão ter a União incluída no polo passivo.
Por fim, tendo em vista a complexidade do tema, a importância para os pacientes, para o poder público e para o setor regulado, é importante acompanhar os desdobramentos da demanda.
Coautoria de: Sueli de Freitas Veríssimo e Marcos Silva Santiago