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A Covid-19 na cadeia da moda e no varejo: impactos contratuais e soluções

A Covid-19 na cadeia da moda e no varejo: impactos contratuais e soluções

27/3/2020

 

Considerada uma das mais poderosas indústrias globais, a moda reúne particularidades que a tornam um dos setores economicamente mais vulneráveis e afetados pela pandemia da Covid-19.

A indústria da moda é fortemente dependente de contratos firmados com empresas sediadas em países que estão no epicentro da pandemia, como China e Itália, além de outros importantes países como Estados Unidos, França, Inglaterra e Japão, verdadeiras passarelas e vitrines daquilo que o mundo irá consumir na próxima estação.

Além disso, os produtos são normalmente fabricados e comercializados seguindo critérios de sazonalidade, originalidade e tendências, particularmente na indústria de fast fashion, cujo modelo de negócios foi consagrado e amplamente adotado pelas grandes redes varejistas na última década. O sucesso desse modelo de negócios se dá justamente na produção rápida e contínua de peças e abastecimento nas lojas físicas e online de coleções semanais ou até diárias. Novidades constantes a preços mais acessíveis.

A Covid-19 atingiu em cheio a indústria da moda, desde o design e concepção até a oferta dos produtos nas araras no ponto final de venda.

Ante um cenário sem precedentes, com determinações de isolamento social, quarentena e paralisação de atividades das fábricas, shoppings e comércio, cancelamento de eventos, conferências, feiras, viagens, redução significativa do fluxo de comércio internacional e importações canceladas, as perdas globais projetadas para o ano de 2020 estão na casa de dezenas de bilhões, com a queda vertiginosa do consumo.[1]

É certo que a preservação da saúde pública e contenção da expansão do vírus através das medidas de isolamento social recomendadas pela Organização Mundial da Saúde são fundamentais neste momento para a contenção da pandemia e estão sendo observadas por muitos países e pelos agentes da indústria.

Cadeia global e pacotes emergenciais

No entanto, é importante ter em mente que a cadeia produtiva da indústria de moda e varejo contém elos que estão sendo impactados em escala global. É provável, inclusive, que mesmo após a reabertura dos shoppings e do comércio como um todo, ainda leve tempo para que as fábricas voltem a produzir e lojas possam ser adequadamente abastecidas. Da mesma forma,  consumidores precisarão de fôlego extra para se recuperarem da espiral causada pela pandemia e retomarem ao ritmo de consumo de antes. Isso sem falar das incertezas econômicas que seguem para recessão e da perspectiva de desaceleração, que já se desenhava nos principais relatórios e indicadores especializados para setor da moda[2].

Infelizmente, não há, em horizonte próximo, perspectiva de normalização das atividades e do consumo.

Portanto, é fundamental que o Governo e os agentes discutam pacotes emergenciais que incluam, por exemplo, a suspensão temporária de tributos e cobrança de juros; ajuda financeira, acesso a crédito de baixo custo e mediante procedimentos simplificados ou expeditos;medidas que possibilitem a preservação do emprego e apoio para trabalhadores autônomos que também integram a economia da moda. Especificamente em setor de atividades tão globalizado como o da moda, há também que se analisar a flexibilização de barreiras tarifárias e não-tarifárias no enfrentamento dos efeitos da Covid-19, bem como alternativas para abastecimento do mercado interno.

Dado o quadro de evolução da pandemia em distintas regiões do globo até chegar ao Brasil, surgem questões legais concretas e que são sentidas por empresas no Brasil. São questões que decorrem da modificação das condições materiais de execução dos contratos vigentes e da inter-relação entre os agentes, como, por exemplo, nos distintos e sucessivos elos da cadeia – fornecimento, importação, distribuição, logística, compra e venda, franquias.

Aplicação de caso fortuito ou força maior

No Brasil, questiona-se se a Covid-19 pode ser invocada como um evento de caso fortuito ou força maior como excludente de responsabilidade. O Código Civil Brasileiro estabelece, em seu artigo 393:
Art. 393.  O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.

Em uma rápida análise e, tomando-se como exemplo o Estado de São Paulo, temos os seguinte contexto normativo em relação ao enfrentamento da COVID-19, que reforça a inevitabilidade do evento e o impedimento na consecução da obrigação assumida e não cumprida por força da pandemia (por exemplo, no caso de paralisação de atividade fabril, fechamento de shopping e comércio, entre outros):

  1. a Lei federal nº13.979/20, que dispôs sobre medidas para o enfrentamento da citada emergência incluiu a quarentena (art 2º, II), a qual abrange a “restrição de atividades […] de maneira a evitar possível contaminação ou propagação do coronavírus”; 
  2. a decretação, pelo Congresso Nacional, de estado de calamidade pública (Decreto Legislativo nº 06/2020);
     
  3. o Decreto nº 10.282/2020, que determina os serviços públicos e as atividades essenciais que necessitam permanecer operantes e acessíveis, inclusive para dar suporte à população no combate ao Covid-19;
     
  4. o Decreto nº 64.879/20, que reconhece o estado de calamidade pública decorrente da pandemia do COVID-19 no Estado de São Paulo e que suspende as atividades de natureza não essencial nos respectivos âmbitos;

Importante destacar, porém, que a excludente de responsabilidade com fundamento na ocorrência de caso fortuito ou de força maior deverá ser analisada caso a caso, considerando-se as particularidades do contrato e o contexto de sua execução.
Além disso, deve-se observar se há algum requisito formal a ser observado com base no contrato – por exemplo, notificação com antecedência mínima.Há que se levar em conta também o efeito da declaração de ocorrência de caso ou força maior, que poderá ser a suspensão da obrigação e exclusão de responsabilidade pelo período de duração da pandemia ou, no limite, a depender do contrato e da obrigação não cumprida, pode resultar a própria rescisão e encerramento do contrato.

Também há o risco de a outra parte não considerar a ocorrência de evento de força maior e, neste caso, determinar o cumprimento da obrigação, sob pena de inadimplemento do contrato. Esse aspecto poderia ter consequências graves, particularmente o vencimento antecipado de dívida, deflagração de crossdefault, multa, rescisão do contrato, etc, e que  afetaria inclusive outros stakeholders.

Na globalizada cadeia de suprimentos da indústria da moda e consequente celebração de contratos internacionais, a possibilidade de recorrer a caso fortuito e força maior dependerá da legislação aplicável a cada contrato. Além disso, a multiplicidade de players e de elos ao longo dessa cadeia pode ensejar a aplicação de leis nacionais distintas, onde resultados diversos podem ser observados[3]. As empresas, portanto, terão de analisar as situações específicas e a hipótese de força maior segundo o direito aplicável ao contrato.

Revisão contratual

No Brasil, outras alternativas podem ser invocadas para regular situações de desequilíbrio contratual, conforme previstas no Código Civil Brasileiro, no artigo 317 (manutenção do equilíbrio contratual determinado em juízo) e nos artigos 478 e 479(onerosidade excessiva). Diante de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, a resolução ou revisão do contrato pode ocorrer se a obrigação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra. O contrato pode ser cancelado ou as obrigações originalmente previstas podem ser alteradas por meio de intervenção judicial.

A jurisprudência brasileira tem sido rigorosa, nos contratos empresariais, quanto à caracterização dos requisitos indicados acima. Nesse contexto, foram negados diversos pleitos de onerosidade excessiva por conta de picos inflacionários ou abrupta desvalorização cambial, diante do entendimento de que tais circunstâncias são previsíveis em nossa economia.

Nossos tribunais têm concedido a revisão contratual apenas em casos extremos, em que fiquem demonstradas a ruptura do equilíbrio financeiro-econômico do contrato ou a alteração substancial das bases econômicas originárias. Por força da Lei da Liberdade Econômica, esse aspecto foi reforçado, com a inclusão de disposição expressa no Código Civil de que “a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada”.

Obviamente, os tribunais brasileiros jamais enfrentaram o desafio de afastar penalidades ou revisar cláusulas contratuais na escala em que a pandemia da Covid-19 indica. Trata-se de uma situação fática absolutamente inédita. Por outro lado, a aplicação dos institutos de força maior ou onerosidade excessiva dependerá da análise de cada contrato, assim como da consideração das circunstâncias subjacentes para a eventual realocação de riscos.

Neste aspecto, as particularidades da indústria da moda mostram-se extremamente relevantes para o deslinde das questões que hoje se colocam com os shoppings fechados, fábricas paralisadas, falta de insumos para produção, suspensão e retenção de mercadorias em trânsito, empregos ameaçados, atrasos e suspensão de pagamentos, queda vertiginosa e abrupta de consumo, dificuldades de pagamento de royalties por licenças de direitos de PI, especialmente marcas, em contratos de licenciamento e franquia, e assim por diante. Será necessária uma análise detalhada de todo o setor, para que todas as implicações da cadeia de produção, distribuição e venda sejam consideradas. O momento exigirá muita atenção por parte dos agentes econômicos, advogados e juízes.

Mediação é a solução

Idealmente, contudo, o próprio setor terá plenos incentivos e condições para buscar soluções em caráter extrajudicial. Dentre elas, destacam-se mediações entre os distintos players desse mercado, muitas vezes representados pelas associações competentes e seus respectivos assessores. As estratégias de mediação facilitam a interlocução entre partes, minimizam a judicialização das questões, evitam o fluxo de litígios em massa para o já assoberbado Poder Judiciário e reestabelecem as relações comerciais. Essa interação envolve, por exemplo:

  1. a renegociação dos contratos vigentes
  2. carência e adaptação de cronogramas de execução de contratos e prazos para pagamento de fornecedores e contratados
  3. medidas para preservação e diluição gradual de estoque
  4. reprogramação de atividades de varejo, logística/transporte e sequenciamento de remessas a clientes

Independente da teoria de fatos impeditivos supervenientes que se possa aplicar, cabe lembrar da necessária aplicação do instituto da boa-fé objetiva, também expressamente previsto no Código Civil. Nesse sentido, shoppings, lojistas, franquias e outros agentes econômicos da indústria da moda devem sempre agir com transparência e manter os canais de comunicação abertos, com esforços de interação proporcionais aos respectivos portes econômicos.
É recomendável que as empresas de grande porte e as associações mantenham os comitês de crise ativos até que as atividades econômicas sejam normalizadas. Os franqueadores, por outro lado, devem atentar para o caráter fiduciário perante os franqueados, para que não possam ser posteriormente demandados também por conta de descumprimento de deveres de lealdade e boa-fé, adicionalmente às questões acima colocadas.Embora desafiador, é possível afirmar, com base no consistente desenvolvimento do setor nas últimas décadas, que a solução negocial aqui apontada é perfeitamente factível, tendo-se em vista a maturidade e sofisticação da indústria da moda no Brasil.

A equipe de L.O. Baptista Advogados está à disposição para orientar players do segmento no enfrentamento dos desafios impostos pela pandemia da Covid-19.


[1]https://www.businessoffashion.com/articles/news-analysis/luxury-braces-for-43-billion-in-losses-as-coronavirus-panic-goes-global
[2]Ver, por exemplo,McKinsey Global Fashion Index (MGFI); e informes disponíveis aqui.
[3]Exceções específicas também são contempladas em caso de contratos regidos pela CISG, à luz do que estabelece, por exemplo, o Art. 79 da Convenção, vigente no Brasil por força do Decreto n. 8327/2014.
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