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“Nova” Lei Antitruste e 100ª Sessão de Julgamento do CADE

“Nova” Lei Antitruste e 100ª Sessão de Julgamento do CADE

Jota.info. –  Colunas
08.03.2017

Patricia Agra

Quando a “nova” Lei de Defesa da Concorrência ainda estava em elaboração, dizia-se carregar o apocalipse e com ele o caos. A aprovação prévia de atos de concentração ia travar investimentos no Brasil, fusões e aquisições iam deixar de ocorrer, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) não tinha condições humanas, financeiras, nem técnicas para a avaliação prévia de transações e condutas anticompetitivas deixariam de ser apuradas.

Até a alteração na estrutura do Sistema, antes formada por três órgãos e objeto de críticas inclusive da comunidade internacional, poderia ser um problema, uma vez que não haveria mais a separação entre os órgãos investigador e julgador e todos os casos nasceriam no CADE pré-julgados, sob uma nulidade incurável.

A Lei veio e assim como o meteoro pré-carnavalesco que atingiria a Terra e que não apareceu na data combinada, sobrevivemos todos. O CADE se organizou; fortaleceu o time responsável pelas análises de fusões e aquisições, mostrou ao mercado que dava conta e que negócios não deixariam de ser realizados se tivesse que aguardar a aprovação do CADE e mais 15 dias. Os negócios teriam, no entanto, que se adaptar.

A maior alteração da lei foi justamente na análise de fusões e aquisições. A lógica toda foi alterada e novos conceitos surgiram.

Saiu a já conhecida intempestividade na submissão das operações e entrou o “gun jumping. A multa que agora preocupa não é mais a multa pela perda do prazo de 15 dias após a realização do tal “primeiro documento vinculativo”– o que, na maior parte dos casos, se contava pela data de assinatura do contrato -, mas a multa pela consumação da operação antes de transcorridos os 15 dias da publicação da decisão do CADE, o que inclui a troca de informações concorrencialmente sensíveis. Novos conceitos, novos problemas.

No regime anterior, o CADE aprovava as operações depois que elas haviam sido realizadas e, em muitos casos, já estavam fechadas. Ativos haviam sido trocados, as estratégias das empresas tinham sido alteradas e funcionários já tinham sido demitidos ou estavam sob nova direção. Nesse regime, as partes acabavam se favorecendo do “scrambled eggs”, em que cabia ao CADE voltar o ovo mexido ao seu estado original, o que muitas vezes era, na prática, impossível.

Sob o novo regime, o tempo corre contra as empresas que assinam os contratos e suspendem o avanço do relacionamento e da transação, devendo manter o nível de competição entre elas – e como o mercado as percebe – até a decisão final do CADE. Nesse ínterim, devem se preocupar com seu comportamento e evitar qualquer ação de consumação da operação, devendo se limitar aos preparativos independentes para a nova ordem, desde que esses preparativos sejam passíveis de serem desfeitos facilmente e pela decisão individual de cada parte.

A Lei 12.529/2011 passa a prever expressamente a intervenção de terceiros em qualquer processo administrativo, reconhecimento das autoridades da relevância da participação de terceiros no processo de análise de atos de concentração, o que, na prática, já ocorria. Isso tem dois benefícios. Em primeiro lugar, há espaço garantido na Lei para a intervenção de terceiros no processo. Como eles conhecem bem o setor envolvido na operação, podem trazer informações relevantes ao processo, reduzindo a assimetria de informações a que o CADE está sujeito.

Outro apocalipse evitado diz respeito a nova estrutura. O antigo Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC), era antes composto por três órgãos: a Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda (SEAE), a Secretaria de direito Econômico do Ministério da Justiça (SDE) e o CADE, autarquia vinculada ao Ministério da Justiça. Cada órgão tinha o seu papel, que no caso da SEAE e da SDE se sobrepunham. Ambas tinham que dar seus pareceres nas análises de atos de concentração e nas investigações de condutas anticompetitivas.

Esse desenho, carregava ao mesmo tempo a vantagem e a desvantagem da descentralização. De um lado, um mesmo objeto era avaliado e reavaliado sob diferentes perspectivas; de outro, essas múltiplas análises eram morosas, repetitivas e ineficientes. Na esmagadora maioria dos casos não se justificava tanta estrutura e sobreposição, tornando o sistema caro e lento, o que contribuía para a ineficiência das decisões.

Os três órgãos eram também objeto de muita crítica por parte da comunidade internacional, que reprovava não somente a quantidade de órgãos, como também a duplicidade de trabalhos e enfatizava a contribuição que essa formação institucional dava a ineficácia das decisões e ao enfraquecimento do desenvolvimento da política de defesa da concorrência no Brasil.

Percebido esse dispêndio desnecessário de recursos para se chegar a igual resultado, a SDE e a SEAE estabeleceram um acordo em que dividiram tarefas, eliminando a sobreposição. A SDE passou a concentrar seus esforços na investigação de condutas, enquanto a SEAE ficava responsável pela análise de atos de concentração. Esse desenho era frágil e precário (mas de forma alguma ilegal) dada a subjetividade sobre a qual fora construído. Acabava por alterar, por meio de um acordo entre as pessoas que no momento ocupavam a direção dessas instituições, o que a lei pretendia. Dessa forma, esse novo modelo poderia mudar novamente, caso os ocupantes dos cargos fossem trocados. A despeito disso, o desenho funcionou a contento.

Assim, o Projeto de Lei que deu origem à Lei 12.529/2011 trazia a reorganização das funções em único órgão, cuja autoridade seria reforçada, com base na experiência vivida nos anos anteriores. A Superintendência-Geral (SG) absorveu as funções de análise e investigação conduzidas pela SEAE e SDE, enquanto o Tribunal permaneceu com as atribuições que antes pertenciam ao CADE.

No entanto, o novo arranjo precisava de adaptações que tratassem dos efeitos negativos que poderia trazer. A maior crítica a essa parte do Projeto de Lei, como comentado, dizia respeito a falta de independência tanto da investigação, quanto do julgamento, se ambas as tarefas estivessem sob um mesmo órgão.

Apesar de todas as funções de fato terem sido concentradas em uma única instituição, a SG foi constituída como unidade gestora autônoma, o que significa ter independência para decidir sobre a aplicação de seus recursos e assim, elaborar sua própria estratégia e definir prioridades, sem a autorização de qualquer outro órgão, inclusive o conhecimento e a intervenção do presidente do CADE.

Ademais, seu dirigente, diferentemente do secretário de direito econômico que era nomeado e destituído a qualquer tempo pelo Ministro da Justiça, tem mandato, aumentando a independência na condução das investigações. De fato, hoje, a SG tem hoje total autonomia da condução das investigações e negociação dos acordos sob sua competência.

Ainda na estrutura, um problema antigo que a lei tentou resolver se referia à composição do plenário. Umas das providências do novo texto legal foi alterar o quórum mínimo de instalação da sessão de julgamento que passou de 5 para 4 membros, mantida a maioria para deliberação.

Ainda, com o fim de evitar que os mandatos dos conselheiros terminassem ao mesmo tempo ou próximos uns aos outros, a Lei 12.529/2011 criou uma regra de transição com tempos de mandatos diferenciados. Isso porque um problema recorrente que o órgão enfrentava era a falta de quórum devido ao interregno de tempo entre o fim do mandato de um conselheiro e a indicação do próximo (ou sua recondução, permitida no regime anterior e vetada pela lei nova). A extensão do mandato dos conselheiros para quatro anos, não permitida sua recondução, também visava resolver esse problema, entre outros objetivos.

No entanto, a demora na indicação de conselheiros persiste e hoje o CADE está com seu quórum reduzido a somente cinco conselheiros e é comandado pelo seu segundo presidente interino. Esse atraso desarrazoado na nomeação dos conselheiros afeta a autoridade e a força institucional do órgão e impacta a legitimidade de suas decisões que legalmente devem ser tomadas por sete e não por cinco, ou menos, conselheiros.

A nova Lei, no entanto, fortaleceu o processo de amadurecimento institucional. Hoje, o CADE tem um sistema de acordos – acordo de leniência, compromisso de cessação de práticas e acordos em concentrações – que funciona, possui regras estáveis e é avaliado como instrumentos positivos, tanto pela sociedade, quanto pelas autoridades.

A primeira leitura feita à nova Lei trouxe a desconfiança de que o Acordo em Controle de Concentrações (ACC) teria sido deixado de fora, por conta do veto integral ao artigo 92. Esse tipo de acordo já era realizado sob a denominação de “Termo de Compromisso de Desempenho” ou TCD, disposto no art. 58 da Lei 8.884/94.

No entanto, a Mensagem de Veto, que dá publicidade às razões pelas quais certos dispositivos não são aceitos pela Presidência da República, esclarece que a razão do veto nesse caso foi que o texto como aprovado pelo Legislativo limitava a realização do acordo à Superintendência Geral, não permitindo assim´, o acordo quando o respectivo ato de concentração já estivesse em análise pelo Tribunal, sob os cuidados de um conselheiro.

Curiosa essa limitação, haja vista que a lei anterior limitava a negociação do TCD pelo conselheiro relator, ou seja, quando o ato de concentração já tivesse passado pelas análises da SDE e da SEAE, e estivesse pronto para julgamento pelo CADE.

De fato, esse entendimento seria contrário ao “espírito do legislador” que incluiu os acordos em ato de concentração em diversos dispositivos ao longo da Lei – artigos 9º, V, X, XIX; 10, VII; 13, X; 46, par. 2º. e 52 -, definindo, ainda, competência específica dos conselheiros em propor esse tipo de acordo, em seu artigo 11, IX.

O CADE regulamentou o procedimento substituindo o silêncio da Lei pela possibilidade de realizar o acordo a qualquer tempo durante a análise até trinta dias após sua impugnação pela SG ao Tribunal, e o aumento no número desse tipo de acordo afastou qualquer dúvida quanto a sua legalidade: em 2012, ainda sob a transição entre as duas leis, foram assinados 3 acordos, 2 em 2013 e 21, entre 2014 e 2016.

O aprimoramento nas regras e aumento na relação de confiança entre o setor privado e as autoridades é percebida no aumento da média de acordos em concentrações, por ano: entre 1994 e 2010 (antiga Lei), foram firmados 54 TCDs, uma média de 3,17 ao ano; enquanto que de 2012 a 2016 (nova Lei), foram assinados 26 ACCs, uma média de 5,2 acordos por ano.

A Lei 10.149/2000, que adicionou o artigo 35-B à Lei 8.884/94 (antiga Lei de Defesa da Concorrência), introduziu o acordo de leniência no Brasil. Na mesma linha catastrófica, as reações à época variavam de comentários de que o instrumento jamais funcionaria porque a sociedade não confiaria na autoridade até de que o acordo de leniência, por premiar a delação de um dos partícipes de uma conduta anticompetitiva, atentava contra os valores morais e os bons costumes do País.

Para usufruir da proteção, o interessado deve identificar demais envolvidos na conduta, fornecer informações e documentos comprovatórios, ser o primeiro a se qualificar com respeito à infração, cessar seu envolvimento, confessar a própria participação no ilícito e cooperar com as investigações.

As regras relativas aos acordos de leniência não sofreram qualquer modificação pela nova legislação. No entanto, o número de acordos fechados pelo Conselho aumentou de forma significativa: de 2003 a 2011, a extinta SDE firmou 23 acordos; de 2012, quando entra em vigor a nova Lei, até 2015, a Superintendência assinou outros 37 acordos, fechando 2016 com 11 acordos firmados, mais 6 leniências plus, totalizando 77 acordos, em 13 anos.

Isso significa um reconhecimento que o programa de leniência está correto e funciona, um “selo de qualidade” e uma declaração de confiança por parte da sociedade, mostrando-se um instrumento no qual os incentivos, sejam para as autoridades, seja aos particulares, estão alinhados.

Importante frisar que para se chegar a esse momento, as autoridades tiveram que explicar os incentivos e as garantias muitas e muitas vezes, inclusive para outras autoridades e órgãos do próprio governo, obter o apoio da comunidade internacional, demonstrar que as regras brasileiras não eram jabuticabas e o primeiro a celebrar o acordo precisou de um bocado de coragem.

Passando do momento inicial – o acordo de leniência, geralmente o instrumento que inaugura a investigação – para o momento final, o Compromisso de Cessação (TCC), que suspende a investigação contra o representado que o assina – a Lei 12.529/2011 não cria, porém aprimora essa espécie de acordo.

Destaca-se duas principais alterações trazidas pelo novel texto legal: a possibilidade de se propor TCC uma única vez e a exigência de confissão como requisito à sua assinatura.

A possibilidade de se propor TCC uma única vez já constava da Resolução CADE n. 46, de 2007, refletindo a experiência do Conselho quanto a ineficiência às negociações em se deixar aberta a possibilidade de o interessado apresentar diferentes versões para o acordo. Com uma única oportunidade, as propostas vinham mais robustas e mais próximas àquilo que a empresa estava realmente disposta a transigir e o acordo poderia ser fechado (ou rejeitado) de forma mais célere, economizando recursos de ambos os lados.

A Lei anterior impedia que o CADE exigisse a confissão ou o reconhecimento da ilicitude da conduta por parte de seu signatário. A Lei 12.529/2011 excluiu essa limitação, abrindo a possibilidade à autoridade de exigir o reconhecimento da conduta entre os critérios de conveniência e oportunidade para realização do acordo. Tanto assim, que o CADE incluiu no artigo 85 de seu Regimento Interno a exigência de reconhecimento obrigatório da conduta para transacionar em casos de cartel. Essa mudança demonstrou maturidade institucional do órgão e o endurecimento na política de combate a carteis, considerada a mais nociva das práticas anticompetitivas e, por essa razão, prioridade das autoridades.

Nesse sentido, a Lei inovou também ao estabelecer a obrigatoriedade de recolhimento de contribuição pecuniária para os casos de cartel, o que já era exigido na prática como requisito para a autoridade transacionar nesses casos. Regras mais claras, mais segurança.

Procedimentalmente, a nova lei ampliou a possibilidade de o acordo ser realizado a qualquer tempo, inclusive no momento inicial das investigações, ainda em fase de procedimento preparatório e de inquérito, o que a lei anterior restringia ao processo administrativo.

Essa limitação não fazia mais sentido nem para o privado, que avaliaria melhor o momento de apresentar sua proposta, uma vez que só teria uma única oportunidade, nem para a autoridade, que também agora estava em melhor condições de avaliar o interesse público em aceitar ou rejeitar o acordo. Ademais, a redação fomentava o debate de quando a lei se referia a processo administrativo de forma ampla, incluindo averiguação preliminar e procedimento e quando se referia especificamente ao Processo Administrativo instaurado.

O endurecimento das regras ao longo do tempo não só não afetou a utilização dos instrumentos, como regras mais claras e testadas o fortaleceram. Não há hoje sessão no CADE em que não haja a homologação de um – ou vários – TCCs.

Por fim, mas não menos importante, a nova Lei não trouxe alteração substantiva na caracterização das condutas anticompetitivas. Em uma mudança sutil, melhorou a definição de cartel para ampliar sua descrição, incluiu serviços na prática de preços predatórios e o abuso de direitos de propriedade intelectual no rol de conduta exemplificativas.

Perdeu, no entanto, a boa oportunidade de eliminar a excrescência do “aumento arbitrário do lucro” como caracterizador de prática anticompetitiva, resquício da época de controle governamental de preços e alta intervenção do Estado na economia, ainda que tenha excluído os exemplos de imposição de preços excessivos e aumento sem justa causa de preços.

A mudança substancial veio na penalidade que se tornou proporcional e relacionada ao negócio onde houve a prática infratora, em substituição a todo o faturamento da empresa ou seu grupo, uma antiga reinvindicação do setor privado que tornava a penalidade imposta pelo CADE desproporcional e questionável.

Todas as mudanças trazidas pela nova Lei não só refletiam a consolidação da experiência das autoridades, como também antecipavam novas práticas e ferramentas que poderiam ser incorporadas na política de defesa da concorrência. A consolidação abre espaço para novos avanços.

No passado, tivemos a introdução do acordo de leniência a o fortalecimento de acordos de forma geral entre o público e o privado como elementos de vanguarda; passamos às discussões de investigações internacionais conjuntas entre autoridades de diferentes jurisdições, o fortalecimento das ações de indenização e, ainda muito incipiente, a discussão de danos.

Como no passado, críticas devem ser ouvidas e consideradas e hipóteses testadas e ajustadas, até que se possa passar à sua consolidação. No entanto, o que se percebe de todo o processo resumidamente aqui descrito é que a instituição precisa de força e de tempo para criar, desenvolver e implementar as modificações que entender necessárias a construção de uma melhor política de defesa da concorrência.

Contribui também para a construção institucional do CADE desafios antigos e que ainda permanecem como orçamento adequado, recursos humanos, escolha e nomeação de conselheiros com base em critérios técnicos e autonomia do órgão. Essas questões são importantes para continuar o avanço rumo ao aprimoramento da política de defesa da concorrência. Muito já foi feito, mas ainda há muito a fazer.

Patricia Agra – Sócia da área de Compliance e Defesa da Concorrência do L.O. Baptista Advogados

 

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