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Prescrição e responsabilidade contratual

Prescrição e responsabilidade contratual

Jota – Coluna do L.O Baptista Advogados
25.08.2018

O último capítulo de uma crônica jurisprudencial

Por – Paulo Macedo e Bruno Panarella

 Pixabay

– Meu contrato foi descumprido. De quanto tempo disponho para exigir a reparação dos prejuízos que sofri?”, pergunta um cliente para o seu advogado ao telefone. A questão é aparentemente simples. Até alguns dias atrás, em todo caso, o advogado do outro lado da linha não teria uma resposta muito segura para oferecer.

– Veja bem: 3 anos ou 10 anos; se calhar, podem ser 5 anos também, difícil dizer”, seria sua resposta mais ou menos embaraçada.

Uma pergunta simples, uma conversa longa. O advogado começaria o diálogo descrevendo para seu cliente o complexo sistema de regra geral e exceções a que corresponde a disciplina da prescrição no Código Civil. Passaria então à controvérsia em torno do sentido dogmático da expressão “reparação civil” veiculada no artigo 206, § 3º, inciso V. Teria de explicar a diferença entre responsabilidade contratual e extracontratual – discussão nobre, que muito provavelmente seria recebida como dispensável curiosidade por seu interlocutor com tempo escasso e problemas práticos mais urgentes para resolver. A seguir, o advogado passaria a informar seu cliente, já um pouco impaciente, sobre o estado da questão nos tribunais brasileiros. A esta altura, teria de reconhecer que o Superior Tribunal de Justiça, responsável por uniformizar a interpretação do direito privado infraconstitucional, não tinha uma posição clara a respeito.

A crônica escrita pelo Superior Tribunal de Justiça a propósito do prazo de prescrição de pretensões fundadas em responsabilidade contratual era uma narrativa pouco linear capaz de deixar desconcertados grandes mestres do fluxo de consciência, como Juan Rulfo ou James Joyce. Cortes bruscos de sequência caracterizavam a orientação dos diversos acórdãos publicados nos últimos anos.

O enredo começa em 2006, poucos anos depois de o Código Civil entrar em vigor. Está em jogo pedido de reparação de prejuízos decorrentes de inadimplemento de contratos de participação financeira e mandato. A Terceira Turma julga a disputa. Firma posição: o prazo cujo termo final encobre pretensões indenizatórias fundadas em inadimplemento contratual é de 3 anos (REsp n. 822.914-RS).

Em 2008, uma reviravolta: a Segunda Seção, que reúne as duas turmas encarregadas de analisar questões de direito privado, julga, em recurso repetitivo, que o prazo de prescrição de pretensões derivadas de relações contratuais é de dez anos. Novamente, estava em jogo inadimplemento de contratos de participação financeira (REsp n. 1.033.241-RS).

Segue-se um período de relativa estabilidade. Com exceção de um julgado peculiar da Quinta Turma sobre contrato de locação (AgRg no Ag n. 1.085.156-RJ), o Superior Tribunal de Justiça passa a decidir que o prazo de prescrição de pretensões derivadas de inadimplemento é de dez anos, por força do artigo 205 do Código Civil. Ao longo de uma década, os repertórios de jurisprudência não registram julgamentos dissonantes. Mais de vinte recursos são julgados. Pelo menos quatro turmas do Superior Tribunal de Justiça se pronunciam nesses julgamentos. Em todos eles, o prazo de dez anos foi a orientação fixada (REsp n. 616.069-MA, REsp n. 1.121.243-PR, REsp n. 1.222.423-SP, REsp n. 1.276.311-RS, REsp n. 1.150.711-MG, AgRg no REsp n. 1.057.248-PR, AgRg no AREsp n. 14.637-RS, AgRg no Ag n. 1.401.863-PR, AgRg no AREsp 426.951/PR, REsp n. 1.159.317-SP, AgRg no AREsp n. 477.387-DF, AgRg no REsp n. 1.436.833-RS, AgRg no REsp n. 1.485.344-SP, AgRg no REsp n. 1.516.891-RS, AgRg no Ag n. 1.327.784-ES, AgRg no REsp n. 1.317.745-SP, AgRg no REsp n. 1.411.828-RJ, AgRg no AREsp n. 783.719-SP e AgInt no REsp n. 1.112.357-SP).

Chega o segundo semestre de 2016, o fluxo se inverte. No julgamento do Recurso Especial n. 1.281.591-SP, relatado pelo ministro Marco Aurélio Belizze, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça voltou a decidir que o prazo para o exercício de pretensões fundadas em responsabilidade contratual é de três anos. A discussão: inadimplemento de contrato de distribuição. O julgamento foi unânime. Além do relator, votaram os Ministros Nancy Andrighi, Paulo de Tarso Sanseverino e Ricardo Villas Bôas Cueva.

Em certa medida, o posicionamento errático da jurisprudência repercutia o estado de coisas na doutrina nacional. Em 2011, reunidos na V Jornada de Direito Civil, alguns dos principais estudiosos do direito civil brasileiro aprovaram enunciado cujo conteúdo infirmava a orientação que se vinha sedimentando na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. De acordo com o Enunciado 419, “o prazo prescricional de três anos para a pretensão de reparação civil aplica-se tanto à responsabilidade contratual quanto à responsabilidade extracontratual”.

O julgado proferido no Recurso Especial n. 1.281.591-SP fez coro a essa interpretação sustentada por parte da doutrina. Referiu-a expressamente nas razões de decidir, colocando de lado a voz de outros estudiosos que se pronunciavam pelo prazo de dez anos. Os argumentos da decisão: o Código Civil inclinou-se por reduzir sensivelmente os prazos do regime anterior; responsabilidade contratual e responsabilidade extracontratual devem observar o mesmo regime jurídico, e a expressão reparação civil é empregada indistintamente para esses dois tipos de responsabilidade; sujeitar responsabilidade contratual e extracontratual a prazos diferentes violaria o princípio da igualdade.

Em cenário de incertezas, cautela. O advogado consultado por seu cliente teria de lhe recomendar do outro da linha uma medida judicial prudente, mas nada cortês: o protesto interruptivo de prescrição previsto pelo artigo 202, II, do Código Civil, promovido segundo o procedimento disciplinado pelos artigos 726 e seguintes do Código de Processo Civil.

Os ruídos no relacionamento com a contraparte, muitas vezes um parceiro comercial importante, deixam-se entrever sem dificuldade. Não seria nada surpreendente se a comunicação do protesto interruptivo entornasse o caldo de um longo relacionamento com problemas pontuais, até então resolvidos de maneira conveniente com a lógica relacional típica dos homens de negócios. Com o protesto interruptivo, o desajuste comercial tende a se acentuar, convertendo-se em litígio. Dissipação friccional de recursos e agravamento da sobrecarga de trabalho dos tribunais brasileiros é tudo o que se pode esperar a partir daí.

Não se pode viver por muito tempo na vertigem provocada pela desorientação – eis um dado antropológico que está na origem das diversas técnicas de orientatio desenvolvidas pela humanidade, a começar pelos pontos cardeais. A sofisticada ideia de previsibilidade que marca o ethos da sociedade capitalista guarda relação não muito distante com essa necessidade elementar de orientação.

Em 2017, a sensível instabilidade deu lugar à interposição dos Embargos de Divergência n. 1.280.825-RJ. Na origem, uma disputa promovida dez anos antes pela Apevale – Associação dos Aposentados, Pensionistas e Empregados Ativos e Ex-Empregados da Companhia Vale do Rio Doce, Suas Empreiteiras, Controladas e Coligadas (“Apevale”) em função de prejuízos sofridos por seus associados como consequência da administração alegadamente fraudulenta de investimentos realizados na Companhia Vale do Rio Doce – CVRD (“Companhia”) pelo Clube de Investimento dos Empregados da Vale – Investvale (“Clube”).

De acordo com as decisões proferidas nos diversos graus de jurisdição, o Clube e seu administrador deixaram de transmitir aos membros da Apevale informações relevantes a respeito do valor real das ações da Companhia, comercializadas no âmbito do Clube por intermédio de cotas representativas. A omissão de informações relevantes e a transferência de cotas do Clube a preço inferior ao valor real representaram violação do estatuto social da entidade: ilícito qualificado pelo Superior Tribunal de Justiça como hipótese de responsabilidade contratual.

A ação de indenização promovida pela Apevale foi julgada parcialmente procedente nos dois primeiros graus de jurisdição. Sobrevieram recursos especiais interpostos pelo Clube e seu administrador. Em 21 de junho de 2016, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça deu parcial provimento aos recursos. Para o que mais de perto interessa, qualificando a violação dos estatutos do Clube como hipótese de inadimplemento contratual, tornou a decidir que o prazo de prescrição é de dez anos, e não três, como o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro havia concluído (REsp n. 1.280.825-RJ). O Clube e seu administrador interpuseram embargos de divergência, e a questão foi submetida à apreciação da Segunda Seção, que reúne os ministros da Segunda e da Terceira Turmas, encarregadas de julgar questões de direito privado.

Os embargos de divergência correspondem ao remédio predisposto pelo Código de Processo Civil para resolver divergências jurisprudenciais a propósito da aplicação do direito material ou processual (artigos 1.043 e seguintes do Código de Processo Civil).

Constatada e provada a divergência jurisprudencial entre os órgãos de um mesmo tribunal, os embargos de divergência podem ser interpostos com o propósito de saná-la.

O acórdão proferido nos autos dos Embargos de Divergência n. 1.280.825-RJ, relatado pela Ministra Nancy Andrighi, discutiu pormenorizadamente os argumentos subjacentes às duas diversas orientações sobre o prazo de prescrição de pretensões decorrentes de inadimplemento contratual. As razões de decidir expostas na fundamentação podem ser reconduzidas a três eixos argumentativos.

Primeiro eixo: critério literal. O artigo 206, § 3º, inciso V, tem a seguinte redação: “Art. 206. Prescreve: […] § 3º Em três anos: […] V – a pretensão de reparação civil”.

Para responder à questão de saber se pretensões indenizatórias derivadas de inadimplemento contratual estão sujeitas à disciplina desse dispositivo, era necessário precisar o sentido dogmático da expressão “reparação civil”.

Partidários do prazo de três anos sustentavam que essa expressão deveria ser lida de maneira ampla, de modo a compreender quaisquer pretensões indenizatórias derivadas de ilícito relativo (responsabilidade contratual) ou absoluto (responsabilidade extracontratual).

Partidários do prazo de dez anos sustentavam que essa mesma expressão deveria ser lida de maneira estrita, de modo a compreender exclusivamente pretensões indenizatórias derivadas de ilícito absoluto (responsabilidade extracontratual). Pretensões indenizatórias derivadas de ilícito relativo (responsabilidade contratual) estariam sujeitas ao prazo de dez anos previsto pelo artigo 205 do Código Civil, a menos que correspondessem a valores liquidados previamente por intermédio de cláusula penal, por exemplo, quando estariam sujeitas ao prazo de 5 anos previsto pelo artigo 206, § 5º, inciso I, do Código Civil.

Depois de examinar cada uma das ocorrências da expressão “reparação civil” ao longo dos 2.046 artigos do Código Civil, o Superior Tribunal de Justiça identificou uma tendência: nos dispositivos que conformam o regime da responsabilidade contratual (artigos 389 a 405), a expressão simplesmente não aparece! De maneira bastante contrastante, essa mesma expressão é empregada em quatro dispositivos que conformam o regime da responsabilidade extracontratual (artigos 932, 942, 943 e 953).

A conclusão extraída do texto normativo não poderia ser mais clara. A expressão “reparação civil” nunca foi usada pelo legislador para disciplinar a responsabilidade contratual no Código Civil: sempre foi empregada de maneira restrita para disciplinar a responsabilidade extracontratual.

Segundo eixo: critério lógico-sistemático. O inadimplemento abre para o credor um concurso eletivo de pretensões: é-lhe dado exigir (i) o cumprimento em espécie da obrigação descumprida, (ii) em certas hipóteses seu equivalente em dinheiro, ou, (iii) verificados os pressupostos próprios, a resolução do contrato, sempre com acréscimo de perdas e danos.

A interpretação de acordo com a qual pretensões indenizatórias derivadas de responsabilidade contratual estão sujeitas ao prazo de três anos dava lugar a conclusões pouco justificáveis em termos de sistema. O credor de uma turbina industrial disporia de dez anos para exigir do fabricante a entrega em espécie do bem que lhe encomendou, mas, depois do terceiro ano, já não poderia exigir o pagamento dos prejuízos que sofreu com a paralisação de sua fábrica.

Esse inconveniente tratamento diverso não parece encontrar justificativa em nenhum dado normativo particular. A prescrição está a serviço da estabilidade. É a necessidade de estabilidade que justifica a prescrição. No curso dos dez anos em que é possível exigir o cumprimento específico, a situação de instabilidade entre credor e devedor perdura, irremediavelmente. Observados determinados critérios, o credor pode manejar suas pretensões contra o devedor a qualquer momento. O encobrimento da pretensão indenizatória ao cabo do terceiro ano não traria nenhuma estabilidade a uma relação em cujo contexto ainda é possível postular a realização coativa da prestação em espécie, seu equivalente em dinheiro ou mesmo o grave remédio da resolução. O encobrimento pontual da pretensão indenizatória apenas mutilaria os direitos assegurados ao credor, sem provocar, em troca, nenhum incremento de segurança.

Terceiro eixo: critério axiológico. A distinção entre responsabilidade contratual e responsabilidade extracontratual tem suscitado questões de toda a ordem. Sujeita embora a críticas, essa distinção é um dado da realidade. Responsabilidade contratual e responsabilidade extracontratual dizem respeito a grupos de casos diversos, com regimes jurídicos diferentes:

– A responsabilidade contratual é precedida de uma relação jurídica contratual entre as partes: está em jogo a vida de relação; na responsabilidade extracontratual, o ato ilícito absoluto é a fonte do vínculo obrigacional que se instaura: é o contato social esporádico que está em causa;

– A responsabilidade contratual protege a confiança recíproca entre as partes de um negócio jurídico; a responsabilidade extracontratual, bens jurídicos gerais em atenção à regra neminem laedere;

– A topografia da responsabilidade contratual é demarcada substancialmente pelos artigos 389 e seguintes do Código Civil; a topografia da responsabilidade extracontratual, pelos artigos 927 e seguintes;

– A capacidade negocial tem regras diversas (artigos 3º e seguintes do Código Civil) daquelas que disciplinam a obrigação de indenizar decorrente de ilícito absoluto (artigo 928, § único, do Código Civil);

– Como regra, a culpa se presume na responsabilidade contratual e tem de ser provada na responsabilidade extracontratual subjetiva;

– Na responsabilidade contratual, há hipóteses de mora ex persona (art. 397, § único, do Código Civil); na responsabilidade extracontratual, a mora é sempre ex re (artigo 398 do Código Civil);

– Na responsabilidade contratual, a solidariedade não se presume (artigo 265 do Código Civil); na responsabilidade extracontratual, a solidariedade é a regra (artigo 942 do Código Civil);

– Na responsabilidade contratual, o devedor responde apenas por dolo nos contratos gratuitos e por culpa nos contratos onerosos (artigo 392 do Código Civil). Na responsabilidade extracontratual, o autor do ilícito absoluto sempre responde por simples culpa (artigos 186 e 927 do Código Civil). Apenas em caso de desproporção grave entre a culpa e o dano o juiz pode reduzir a indenização por equidade (artigo 944, § único, do Código Civil).

A igualdade é um valor fundamental do sistema jurídico que recomenda tratar situações idênticas de maneira uniforme, mas também impõe que situações diversas sejam objeto de tratamento diverso. O Superior Tribunal de Justiça reconheceu que há diferenças relevantes entre responsabilidade contratual e extracontratual. Sujeitar esses dois tipos diferentes de responsabilidade ao mesmo prazo prescricional pareceu-lhe violar o princípio da igualdade: para situações diversas, prazos de prescrição também diversos.

Os três eixos argumentativos em torno dos quais gravita a fundamentação do acórdão proferido nos autos dos Embargos de Divergência n. 1.280.825-RJ espelham construções dogmáticas sólidas de setores autorizados da doutrina nacional (Judith Martins-Costa; Cristiano de Sousa Zanetti. Responsabilidade contratual: prazo prescricional de dez anos, RT:979:2017, pp. 215 e ss.).

Participaram do julgamento os Ministros Villas Bôas Cueva (Terceira Turma), Marco Aurélio Belizze (Terceira Turma), Moura Ribeiro (Terceira Turma), Maria Isabel Galiotti (Quarta Turma), Antonio Carlos Ferreira (Quarta Turma), Marco Buzzi (Quarta Turma), além da relatora, Ministra Nancy Andrighi (Terceira Turma) e do Presidente da Segunda Seção, Ministro Paulo de Tarso Sanseverino (Terceira Turma). O Ministro Luis Felipe Salomão (Quarta Turma) não participou do julgamento em razão de impedimento. Cinco ministros tomaram partido do prazo de dez anos, orientação adotada por maioria, contra os votos vencidos dos Ministros Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Belizze e Moura Ribeiro.

A decisão da Segunda Seção, cuja publicação está prevista para o próximo dia 2 de agosto de 2018, é o último capítulo da crônica jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça a respeito do prazo de prescrição a que estão sujeitas pretensões derivadas de inadimplemento contratual. Último capítulo nos dois sentidos que essa expressão pode tomar em língua portuguesa: o capítulo mais recente e também – ao que tudo indica – o desfecho definitivo dessa narrativa acidentada.

Ao menos, o advogado que respondia reticente ao seu cliente do outro lado da linha terá à mão critérios mais seguros quando atender o próximo telefonema.

PAULO MACEDO – sócio do L.O. Baptista Advogados
BRUNO PANARELLA – advogado do L.O. Baptista Advogados

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